“Concretizei a minha missão e coloquei as ligas europeias no mapa do futebol internacional”


A poucos dias de abandonar o cargo de CEO da Associação das Ligas Europeias de Futebol Profissional (EPFL), EMANUEL DE MEDEIROS, faz um balanço da sua liderança e as suas expectativas para o futuro.

Cessa no final de março as funções de diretor executivo da EPFL. Por que é que decidiu sair da EPFL?
Houve muita gente que ficou surpreendida por alguém, pelo seu próprio pé, ter decidido cessar funções de primeira linha na indústria do futebol internacional. Sempre estive convencido que líderes esclarecidos não se perpetuam nos cargos. Embora eu tenha sido eleito, legitimado pelo voto, entendi que há um tempo para tudo. Ao fim de uma década a liderar um organismo internacional que foi criado de raiz, e que hoje é reconhecido, prestigiado e influente no futebol internacional, entendi que a minha missão estava cumprida e que as principais bandeiras estratégicas que me tinham levado a assumir o cargo estavam concretizadas e que era altura de virar uma nova pagina na minha vida e carreira. Penso que concretizei a minha missão e coloquei as ligas europeias no mapa do futebol internacional.

Nestes quase nove anos em que ocupou o cargo quais as principais conquistas da EPFL?
Antes de a EPFL ser criada, no mapa só existiam as federações nacionais, a FIFA e a UEFA. As ligas tinham um papel da maior importância enquanto organizadoras das competições, enquanto entidades com competências na comercialização dos direitos, enquanto associações patronais, mas esse papel não estava reconhecido. A própria FIFA recusava sequer a ouvir ou a receber qualquer liga que se lhe dirigisse com qualquer problema. Na sequência de uma reunião que tive com o presidente Blatter foi posta uma pedra sobre este assunto, virou-se uma nova página e iniciou-se um ciclo positivo e construtivo de cooperação e reconhecimento. Ao nível da própria União Europeia ninguém sabia o que era uma liga profissional. Sabiam que existiam campeonatos mas as entidades em si, pouca ou nenhuma influência ou interação tinham com a União Europeia. Entendi que era vital desenvolver um caminho de aproximação, de reconhecimento recíproco com a Comissão Europeia, com o Parlamento Europeu e com as demais instituições. Antes de chegar à EPFL ninguém sabia da importância que tinham os chamados direitos de propriedade intelectual, as imagens, as transmissões televisivas, os emblemas... Eram áreas negligenciadas pela opinião pública e pelo próprio movimento desportivo. A EPFL pôs isso no mapa e conseguiu que a Comissão Europeia pusesse em prática um conjunto de iniciativas de alcance político e jurídico que viessem proteger essa fonte de riqueza que é a principal fonte de receitas do futebol profissional e de todo o desporto.

A integridade das competições é uma das bandeiras da EPFL.
Fui a primeira pessoa neste País que levantou a questão da necessidade de se regular o mercado de apostas desportivas online. Fi-lo por saber que aí residia uma das principais ameaças à integridade das competições e que era preciso haver disciplina e regulação, das quais dependiam em primeira linha do poder político, requerendo medidas de iniciativa legislativa e existir igualmente uma resposta concertada do movimento desportivo. Hoje em dia, as apostas desportivas estão na ordem do dia e julgo que se não fosse a EPFL o mundo desportivo não tinha acordado para essa realidade.

E relativamente às transferências de jogadores? Muitas continuam envolvidas num manto de desconfiança. Acha que a regulamentação dos agentes desportivos deve ser alterada como propõe a FIFA?
Em 2009, a FIFA anunciou publicamente que o anterior regime regulamentar tinha falido porque concluía que só apenas entre 25 e 30 por cento das transferências internacionais tinham intervenção de um agente licenciado. De 2009 para cá procurou seguir uma via de desregulação que acho que se fosse realmente seguida conduziria ao caos no mercado de transferências e um dano maior na credibilidade do futebol em si. A EPFL conseguiu criar uma proposta regulamentar alternativa que evitasse que indivíduos sem escrúpulos pudessem intervir no futebol. Essa proposta foi por mim apresentada em fevereiro de 2013 e foi sufragada quer pelo comité executivo da UEFA, quer pelo congresso e está agora em fase de desenvolvimento. Todas as grandes reformas que foram feitas no futebol profissional nos últimos 10, 15 anos têm a nossa marca. Para além de tudo isto, o trabalho de criar condições para que um conjunto de reformas ao nível nacional, das próprias ligas, pudesse existir. As ligas não falavam entre si, não se conheciam. Nós encurtámos essas distâncias. Hoje reina o espírito de estreita colaboração, partilha de informações, de boas práticas, e é isso que justifica muitas das medidas reformistas que têm sido implementadas a nível nacional.

De que forma as ligas profissionais estão  aprender umas com as outras?
Desde logo foi necessário dotar as ligas de uma visão comum, de um desígnio estratégico comum e criar uma coesão e unidade intensa entre as ligas. Não existia e nós conseguimo-lo. Criámos também espaços de contacto e colaboração nos mais diversos setores estratégicos através da criação de estruturas internas que pudessem agregar os contributos das diferentes ligas, dar oportunidade aos seus representantes, não só de aprender com outros mas também de partilhar os seus conhecimentos no domínio da comercialização dos direitos, dos media, da organização das competições, das transferências e também do pilar fundamental que é a relação entre os clubes e os jogadores. Temos também um gabinete de research que reúne tudo o que há sobre futebol profissional na Europa, sobre a organização, a estrutura, as competências e como são exercidas ao nível de cada liga. Foi uma forte aposta estratégica, não apenas de informação mas também de formação. De paulatinamente ir mudando mentalidades para que um conjunto de reformas pudesse ser desenvolvido. Não só nas principais ligas mas por toda a Europa.

Há alguma liga, das menos desenvolvidas, que tenha tido uma grande evolução graças à ação da EPFL?
Nunca procurei impor nada às ligas mas sim criar condições para que pudessem escolher do cardápio de soluções existentes escolher as que mais e melhor correspondiam aos seus anseios e problemas. Quando olhamos para o mapa constatamos que há cinco ligas no pelotão da frente, sendo que há uma que se destaca, que é a inglesa, mas depois temos um conjunto de ligas que têm tido uma evolução consistente e dado mostras de grande proximidade nos vários domínios como a organização das competições, da comercialização dos direitos, da sua própria autorregulação. Ocorre-me os casos da Polónia, da Escócia, da Rússia. Souberam criar condições para que o futebol fosse valorizado do ponto de vista qualitativo, evolução organizativa das competições, mais atrativas junto dos adeptos, patrocinadores e investidores.

A relação entre EPFL (empregadores) e FIFPro (trabalhadores) ganhou particular relevância no denominado “Diálogo Social para o Sector do Futebol Profissional” sob a alçada da União Europeia e com a participação da UEFA e da ECA.
É uma das razoes que me leva a sentir que cumpri a minha missão. Sempre me bati pela criação de uma plataforma de concertação social que reunisse os representantes dos empregadores (clubes) e dos futebolistas. Em conjunto com a FIFPro criámos, sob o auspício da Comissão Europeia, o Diálogo Social Europeu. Esta plataforma de convergência entre clubes e futebolistas profissionais representa nela própria uma nova era em termos de orientação política no futebol. Porque são hoje, os representantes desses dois lados da indústria do futebol que têm em si o poder de tomar decisões que a eles interessam sem interferências da FIFA ou UEFA. É bom que a EPFL e a FIFPro que tenham consciência disso. Não é apenas um poder, é uma responsabilidade. Tem vindo a ser paulatinamente desenvolvida com ações concretas. Em Abril de 2012 firmámos um acordo que visa disseminar pela Europa um conjunto de critérios contratuais mínimos que visa assegurar a estabilidade contratual e a proteção nas relações laborais entre clubes e jogadores, em benefício comum.

Como é a relação entre a EPFL e a FIFPro e os sindicatos de jogadores?
Numa leitura mais simplista podemos dizer que representamos lados opostos do espectro desportivo. Mas aquilo que nos une são os interesses superiores do futebol. É a capacidade de compreender que temos de encontrar mecanismos de colaboração, de compromisso para que os interesses comuns possam ser salvaguardados e desenvolvidos. Mostramos que mesmo divergindo somos capazes de encontrar pontos de diálogo e de ação em conjunto. Já referi os critérios contratuais mínimos mas há outros como por exemplo o de erradicar, ou de pelo menos mitigar, a chaga do incumprimento salarial. Esta é outra bandeira que erguemos em conjunto.

O fair-play financeiro europeu é algo mesmo real?
A medida da UEFA, apoiada por todos os parceiros, foi ousada e corajosa e julgo ser vital para salvaguardar a sustentabilidade do futebol europeu. Desengane-se quem pense que com manobras ardilosas e chico-espertices vai contornar esses critérios porque esta é também uma prova de fogo, de credibilidade para a própria UEFA. Sei que a UEFA está intransigente na aplicação dos critérios do fair-play financeiro. Disso depende a sustentabilidade do futebol no seu todo mas também a existência de condições de concorrência leal entre os clubes que participam nessas competições e também uma garantia de que os jogadores e outros profissionais que estão ao serviço dos clubes recebem as contrapartidas a que legitima e contratualmente têm direito.

Os dirigentes dos clubes responsáveis por gestões ruinosas deveriam ser criminalmente responsabilizados?
Se no exercício de uma qualquer função um agente pratica um delito e esse delito é tipificado como um crime deve incorrer na respetiva sanção. Agora, também não aceito que se queira transformar os dirigentes dos clubes numa espécie de bodes expiatórios para todo e qualquer problema. No momento de assinar um contrato, há muito jogador que tem a intuição que está a assinar algo que dificilmente será cumprido. Assume aqui também uma quota-parte de responsabilidade com este risco. Muitas vezes são os seus agentes que instigam a essas situações. Mas não há dúvidas que há conjunto de obrigações que é assumida pelo dirigente de um clube e essas obrigações devem ser respeitadas. Deve haver boa regulação e isso passa pelo enquadramento legal ajustado à realidade. É responsabilidade do poder político. Não sei se a Assembleia da República tem tido muito tempo, nos últimos anos, de pensar nas questões do futebol, ou de lhe conferir a dignidade e a importância económica e social que ela manifestamente detém.

Concorda com a propriedade de passes de jogadores por terceiros?
É uma matéria muito complexa a sensível e que mexe com dois pilares fundamentais: primeiro, é um modelo de sustentabilidade do futebol de alguns países, tais como Brasil, Argentina, Portugal, Espanha e outros; segundo, mexe com a integridade das competições. O que me assusta é existir ainda algum alheamento ao que se está a passar. Não concebo que um assunto que é falado às claras ainda não tenha tido uma resposta regulamentar condizente. Proibir é fácil, basta ter vontade de o fazer, criar regulamentos… Difícil será haver um tecido normativo de tal modo exaustivo que impeça manobras de o contornar. Mas do ponto de vista da regulação nada tem sido feito. Qual é o conhecimento que temos das estruturas acionistas das sociedades desportivas? Quem tem os direitos económicos sobre jogadores? Quem são os titulares? Fala-se muito em fundos de investimento e nesse capítulo há fundos de investimento que existem à luz do dia, que estão sujeitos a regras e inclusive à supervisão da CMVM, e há outros que existem na mais livre e desenfreada desregulação. Fala-se em fundos sediados em offshores. Mas quem está por detrás desses fundos? Será que isso não suscita questões em termos da integridade das competições?

Quem deve tomar a decisão de regular adequadamente esse fenómeno?
Varias entidades, desde logo a própria FIFA. Também não compreendo o facto de a FIFA anunciar que vai abolir o sistema de licenciamento de agentes, que ainda está em vigor, porque ainda não foi formalmente recusado, e haver federações, ao que dizem e espero não ser verdade, que já não colocam essa questão no topo das suas prioridades.

O match fixing tem sido uma das bandeiras dos sindicatos de Jogadores. Qual tem sido o papel da EPFL nesta matéria?
O escândalo verificado na Alemanha em 2005 abalou os alicerces do futebol e do desporto e fazer ver que a internet e outros avançados tecnológicos associados às apostas desportivas e a exploração dos direitos e conteúdos que pertencem às ligas e aos clubes, abriram, não só um caudal imenso de novas oportunidades de negócio mas também alguns focos de ameaça à integridades das competições. Procurámos desde logo colocar este assunto na agenda. É um assunto sério e grave. Sensibilizámos o poder político para a necessidade de haver políticas legislativas adequadas, concertadas ao nível da União Europeia e, para além dela, que envolvessem não apenas o legislador mas também as autoridades judiciárias, que não devem encarar o fenómeno da manipulação da verdade desportiva, de apostas ilegais, apenas como um assunto menor. A prevenção e o combate a este tipo de problemas ainda não ganhou a importância suficiente na agenda das autoridades judiciais. Tenho conhecimento de notícias preocupantes que por vezes deixam que o crime se concretize para depois agir. A polícia também tem uma função preventiva. Não podemos deixar que o bom-nome do desporto seja arrastado para a lama por meia dúzia de batoteiros. Ao nível da EPFL criámos um código de conduta que foi aprovado por unanimidade para todas as ligas e que até fim desta época devia por todas ser concretizado. Prevê medidas de adequação regulamentar com a proibição ou sérios impedimentos no que diz respeito aos principais participantes nas competições. Não aceito que qualquer agente desportivo aposte na competição que está a disputar. Há situações de conflito de interesses que devem ser evitadas. Não compreendo que haja apostas desportivas em competições que envolvem menores. Não concebo que o poder político continue perdido em eternos debates e não aja em conformidade. Temos de combater as apostas ilegais e a viciação da verdade desportiva. Outra aposta muito importante é a posta da prevenção, sobretudo junto dos mais jovens.

As datas do mercado de transferências de Inverno não deveriam ser iguais para todas as ligas europeias?
Não é possível porque nem todos os campeonatos começam ao mesmo tempo ou são disputados no mesmo período.

Qual a sua opinião sobre a profissionalização da arbitragem?
É bem-vinda. Os árbitros devem ter todas as condições para exercerem cabalmente as suas funções.

Sendo um homem do mundo, qual é a imagem que há no estrangeiro da arbitragem e do jogador português?
A arbitragem portuguesa é vista com respeito e reconhecida. Quanto ao jogador português é visto como o expoente máximo do futebol. Muitos nos honra o facto de ter um nosso concidadão [Cristiano Ronaldo] considerado o melhor do mundo. Isso deve servir de exemplo e incentivo a milhares de jovens que estão a iniciar-se no futebol e fazer com que os clubes reforcem a sua aposta na formação. Estou convencido que a regulação dos direitos económicos dos jogadores e saber-se quem paga o quê a quem originaria vantagens como a transparência financeira e a aposta na formação. E isto é válido para qualquer país.

E qual é imagem da liga portuguesa além-fronteiras?
Tem a imagem de uma liga de média dimensão competitiva.

Qual a sua liga preferida?
Não tenho.

Nem como adepto?
Gosto de bom futebol. Mas penso que a Premier League a todos fascina. É notável a capacidade e a entrega que os jogadores demonstram em campo, as paragens de jogo são ínfimas, o espetáculo é permanente, não há fitas dentro de campo, a procura pelo golo é permanente…

O seu futuro passa pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional?
De quatro em quatro anos esse cenário ressurge mas ainda não tive tempo para fazer uma reflexão profunda e decidir o que vou fazer.