“Estou muito contente com a minha carreira”
Após uma carreira de 24 anos, CARLA COUTO pendurou as chuteiras. Na hora do balanço diz-se contente com o que alcançou, do arrependimento de algumas decisões que tomou (ou não) e do desejo de ajudar a desenvolver o futebol feminino.
Porquê a decisão de acabar agora a carreira?
Achei que era o momento ideal. Fiz 40 anos e penso que era a altura exata para terminar a carreira e tentar ser útil ao futebol feminino de outra forma.
Foi uma decisão pensada?
Tomei-a com consciência. O facto de ter deixado a Seleção há dois anos foi o primeiro passo para o fim da minha carreira. Nunca escondi que o meu grande objetivo era chegar à Seleção Nacional. Foi com muita naturalidade que senti que tinha chegado o fim da minha carreira.
Gostava de ter um jogo de homenagem?
Era engraçado mas não faço disso algo transcendente. Era engraçado porque nunca foi feito. Fez-se uma festa muito bonita à Carla Cristina quando ela acabou a carreira mas não penso nisso.
Pretende continuar ligada ao futebol feminino de que forma?
Quero muito ficar ligada ao futebol. Sempre tive essa ambição, seja ao nível do treino ou como embaixadora do SJPF como acontece atualmente. Quero ser útil à modalidade, dar-lhe mais visibilidade. Já que estou neste projeto, e o qual abracei com muito orgulho e responsabilidade, quero dar continuidade ao trabalho que estou a fazer no Sindicato.
Teve uma carreira ímpar. Vinte e quatro anos como futebolista e 145 internacionalizações com a camisola de Portugal. Qual a sua melhor recordação?
Foram muitas. Felizmente, tive uma carreira recheada de conquistas. Fui 11 vezes campeã nacional, ganhei seis Taças de Portugal… Tive muitos momentos bons mas o mais marcante foi sem dúvida quando fui internacional pela primeira vez. Marcou-me para o resto da minha vida. Era muito nova, tinha 19 anos e vestir a camisola da seleção do País foi algo de grandioso.
Quem foi o adversário?
Foi a seleção de sub-20 da Suécia, num jogo disputado em Faro. Eu estava muito nervosa. Quando cantei o hino vieram-me as lágrimas aos olhos, não conseguia parar de tremer. Nunca pensei chegar à Seleção nacional. Mais até porque eu não queria ir para o futebol 11. Foi o meu pai que praticamente me obrigou a ir aos treinos de captação ao sporting. Depois, chegar à seleção, ser titular, foi algo que nunca vou esquecer.
E a pior recordação da sua carreia?
Elejo três momentos mas o pior foi quando parti a perna esquerda ao serviço da Seleção. Outro momento que me custou muito foi na época passada quando perdi a final da Taça de Portugal. Ganhei várias Taças de Portugal mas nunca como capitão de equipa. O ano passado, era a capitã e não conseguimos ganhar a Taça. Finalmente, o terceiro momento foi quando me despedi da Seleção Nacional.

Qual o clube onde mais gostou de jogar?
Gostei de todos mas destaco o Sporting porque foi o meu primeiro clube e sou sportinguista. Mas não posso esquecer o 1.º Dezembro, clube onde joguei durante 14 temporadas e ganhei 11 campeonatos. Mas não esqueço todos os outros clubes por onde passei. Sempre vesti a camisola com o máximo de profissionalismo.
E a pior experiência?
A pior decisão que tomei foi em 2003 quando não aceitei ficar no Arsenal de Inglaterra. Talvez aí pudesse ter tido uma carreira ainda melhor. Na altura não me pareceu o melhor. Tinha regressado da China, era profissional, só vivia do futebol e quando recebi o convite do Arsenal, o contrato era por objetivos, receei não corresponder às expectativas e recusei o convite. Se calhar fiz mal. Ao longo da minha carreira recusei vários convites para emigrar. Arrependo-me de, se calhar, não ter tido a coragem de ter saído e de fazer da minha vida o futebol. Mas como comecei a trabalhar muito cedo e desde logo ganhei a minha independência financeira sempre tive muito medo da instabilidade. Gosto de estar financeiramente estável. Sempre tive medo de emigrar.
Como aconteceu a hipótese de jogar no Arsenal?
Foi engraçado. Durante um Mundialito, no Algarve, o selecionador da Irlanda do Norte cruzou-se comigo na receção do hotel, desejou-me um bom jogo e disse que eu era uma boa jogadora. Eu, na brincadeira, disse à secretária técnica deles que em vez dessas palavras bom, bom era que me levasse para o Reino Unido. Ela transmitiu as minhas palavras ao selecionador da Irlanda e ele perguntou-me se eu queria mesmo ir e eu respondi que sim. Passados uns meses, recebi um telefonema de um português a dizer que trabalhava para o Arsenal e que o treinador da equipa feminina do Arsenal estava interessado em mim. Fui a Londres um fim-de-semana para conhecer as instalações e fiz uma pré-época de duas semanas. Gostaram do meu trabalho e apresentaram-me uma proposta a qual não aceitei.
Jogou na China (em 2002, no Fhosan Guandzon) e em Itália (em 2011/12, na Lázio). Como surgiram essas oportunidades?Para a china foi o professor Nuno Cristovão que num estágio da seleção me perguntou se eu estava interessada. Primeiro recusei e depois acabei por aceitar. Na Lázio foi por intermédio de alguém que me arranjou esse contrato.
E como correram?
Encontrei duas realidades completamente distintas. Na China foi muito complicado. Eu não conseguia comunicar com ninguém. Fomos três portuguesas para a China mas cada uma foi para a sua equipa. Eu era a única estrangeira da minha equipa, vivia sozinha num hotel e foi muito complicado. Não entendia ninguém e ninguém me entendia. Mas, apesar de não perceber a língua gostei muito dos treinos, da forma e da intensidade de como se trabalhava. Agora, a nível pessoal, foi muito difícil. Pensei muitas vezes em vir embora mas entretanto uma das outras duas portuguesas que foram comigo deu-se mal e veio jogar para a minha equipa. A partir dai foi tudo muito mais fácil. Gostei muito e se pudesse tinha ficado mais tempo. A equipa é que não tinha capacidade financeira para pagar o que a federação chinesa pagava. Curiosamente, no ano a seguir, eu e a Edite Fernandes fomos convidadas para voltar à China mas foi na altura da epidemia de pneumonia atípica, tivemos receio e não fomos. Tive ainda um convite para a Suécia, bom financeiramente, mas também recusei. Como já disse sempre tive medo de emigrar. Curiosamente, já com 37 anos, recebi um convite para ser profissional de futebol na Lázio de Roma.
E como foi na Lázio?
Foi uma boa experiencia apesar de a partir de certo momento não receber. Foi o estragar de um sonho. Abdiquei da minha vida profissional em Portugal, meti uma licença sem vencimento, para ir jogar futebol e depois estive seis meses sem receber salário. Regressei a Portugal sem receber. Esse facto tornou triste a minha passagem pela Lázio mas de resto fiquei orgulhosa de aos 37 anos uma equipa como a Lázio reconhecer o meu valor enquanto atleta.
Os salários em atraso são uma realidade comum no futebol feminino profissional?
Não sei mas pelo contacto que tenho com jogadoras portuguesas no estrangeiro isso não se verifica. Ao que sei sou a única jogadora com esse problema e ainda hoje a situação não está resolvida.
Quais as diferenças entre o futebol feminino na China e em Itália comparativamente com Portugal?
Na China treinava várias vezes ao dia. Já em Itália é como em Portugal, três treinos por semana mas com uma grande diferença: em Itália treinava às sete da tarde, em Portugal os treinos são às nove da noite. Essas duas horas fazem toda a diferença. Às nove da noite já estás muito cansado. Em Itália, outra diferença que existe é que o campeonato é muito mais físico mas menos tecnicista que o português.

Aos 40 anos de idade encontrou nos relvados colegas e adversárias com 15, 16 anos. Como é que a tratam?
Como outra jogadora qualquer mas já não posso dizer o mesmo da assistência. Esta é muito mais dura com os seus comentários. Mas isso passa-me ao lado. Interessa-me é como eu me sinto a jogar futebol. Até agora, mesmo com 40 anos acho que fui uma mais-valia.
Provavelmente encontrou jogadoras que chegam ao pé de si e lhe diziam que a Carla era o seu ídolo ou referência. Como reagia?
Bem, com naturalidade. Eu também tive as minhas referências.
Está contente com a sua carreira?
Sim, estou muito contente com a minha carreira. Sinto-me uma jogadora realizada.
O SJPF nomeou-a embaixadora para o futebol feminino. Como está a correr a experiência?
Está a ser muito gratificante. Sinto-me muito mais preenchida ao verificar que o ainda pouco que fazemos está a alterar o futebol feminino em Portugal. Sempre sonhei ficar ligada à modalidade como alguém que enquanto jogadora deu tudo e jogou ao mais alto nível e que depois enquanto embaixadora fazer pelas minhas colegas aquilo que nunca ninguém fez por mim. Quero fazer pelas jogadoras tudo o que estiver ao meu alcance para melhorar o futebol feminino e para que elas sintam que há uma instituição como o Sindicato que está cá para as defender, apoiar e dinamizar a modalidade.
É bem recebida nos clubes?
Sim, sem qualquer razão de queixa. Noto que valorizam o facto de estarmos a fazer algo pelo futebol feminino.
Qual é o feedback que tem das jogadoras relativamente aos prémios instituídos pelo SJPF?
Muito positivo. Dão-nos os parabéns pelo nosso trabalho. Mencionam muito a igualdade do género. Ou seja, ainda bem que o Sindicato, à semelhança do que faz com o futebol masculino também dá prémios ao feminino. O espaço do futebol masculino é intocável mas não podemos ficar de braços cruzados. O futebol feminino tem o seu valor e temos que dar-lhe mais visibilidade. A jogadora portuguesa merece. São todas amadoras e têm qualidade. Eu e o Sindicato estamos a trabalhar nesse sentido e acho que o temos conseguido. O Sindicato tem vindo a crescer, a ganhar mais empatia entre as jogadoras e todas louvam o nosso trabalho.
Qual é o nível atual do futebol feminino em Portugal?
As coisas estão a mudar. Este ano o campeonato foi decidido na última jornada, algo que era impensável aqui há uns anos. A qualidade é mais elevada, as equipas estão muito melhor preparadas e o nível entre elas é muito mais equilibrado. Isso é muito bom para o futebol português.
No futebol feminino uma jogadora paga para jogar ou consegue jogar e ainda ter alguma contrapartida financeira?
Sim, paga para jogar já que são poucas as ajudas financeiras. As que existem são para transportes. Acredito que se os clubes de maior dimensão apostassem no futebol feminino se calhar haveria mais parceiros e patrocinadores e as jogadoras talvez tivessem alguma ajuda. Vamos ver. Acredito que no futuro será muito difícil uma Liga profissional mais quem sabe uma semi-profissional?
Fica triste com a grande diferença que existe, a todos os níveis, entre o futebol feminino e o masculino?
Sim, claro que fico. Cometem-se loucuras no futebol masculino e se calhar com um terço do que se gasta no masculino fazia-se algo de muito bom no feminino. Mas é a realidade que temos e não vale a pena mais lamentos. Temos que continuar a trabalhar e apelar às jogadoras que continuem a dedicar-se à modalidade. Acredito que se continuarmos a trabalhar e se a Seleção AA, a curto prazo, tiver bons resultados, o cenário melhorará. As coisas são mesmo assim. O futebol feminino também tem o seu espaço e é bonito de se ver.
Começou a carreira no Sporting. Como é que isso aconteceu?
Através do meu pai. Na altura até nem jogava futebol, jogava andebol no Liceu Passos Manuel. Mas o meu pai insistiu e lá fui aos treinos de captação. Ao intervalo pediram-me para assinar e tudo começou aí.
Tem várias experiências como treinadora. Gostava de voltar a essa função?
Sim, gosto de estar no campo, de transmitir o conhecimento que adquiri ao longo dos 24 anos carreira. Mas neste momento estou mais atraída pelo trabalho que estou a desempenhar no Sindicato. Se pudesse associar as duas atividades seria ainda melhor mas estou muito satisfeita com o que estou a fazer no Sindicato.
Vê-se a treinar uma equipa masculina como por exemplo acontece agora com Helena Costa, em França?
Não como treinadora principal mas gostava desse desafio. Gostava de ser adjunta de um treinador masculino porque acho que não tinha temperamento para algumas situações.
Uma mulher a treinar uma equipa masculina é uma situação complicada?
Só se for para os jogadores já que para o treinador é normal. Um treinador dá treinos a um atleta, seja um homem ou uma mulher. Mas se calhar para um jogador não é normal ser treinado por uma mulher. Talvez exista um conflito de mentalidade. Mas, como bem disse a Helena Costa, avaliem-na pelos resultados e não por ser mulher. Quando se tem qualidade não importa se é homem ou mulher.
Acha que Helena Costa terá sucesso?
Gostaria muito que tivesse sucesso. A Helena foi minha treinadora no 1.º Dezembro e tem muita qualidade. Desejo-lhe felicidades até porque o seu sucesso será o sucesso de Portugal.
Qual o seu desejo para o futebol feminino português?
Tenho três: que a Seleção Nacional chegue a uma fase final de um Mundial ou Europeu; que o Ouriense, atual campeão nacional, passasse à fase de grupos da Champions e, por último, que aumentasse o número de praticantes no futebol feminino para dar mais consistência e sustentabilidade à modalidade.
Bilhete de Identidade
Nome: Carla Sofia Basílio Couto
Data de nascimento: 12-04-1974
Naturalidade: Lisboa
Clubes: Sporting, Trajouce, 1.º Dezembro, Futebol Benfica, Fhosan Guandzon (China), Lázio (Itália) e Valadares Gaia.