"O futebol feminino tem pernas para andar em Portugal"
Susana Marques, capitã do Futebol Benfica, "À Conversa com Carla Couto", revela em primeira mão que vai abandonar os relvados.
Quem é a Susana Marques?
O meu nome é Susana Marques, tenho 31 anos, sou jogadora do Clube Futebol Benfica e sou uma das capitãs, com muito orgulho. Comecei a jogar futebol com 16 anos e passei por três clubes (Desportivo de Monte Real, Odivelas e Futebol Benfica). Neste momento, em termos profissionais, sou bolseira de investigação, estou a terminar o doutoramento em Sociologia e tenho formação-base em Psicologia. Para além do futebol, que é uma das minhas grandes paixões, tenho outra que é a música.
O que fazes, ao certo, na tua profissão?
Eu trabalhava como investigadora no ISCTE, que foi onde fiz Psicologia. Quando estava a terminar o contrato, surgiu a oportunidade de me candidatar a uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia para tirar o doutoramento em quatro anos. Eles dão uma remuneração mensal no período máximo de quatro anos e essa é a minha atividade a tempo inteiro, à qual tenho de dar dedicação exclusiva. A investigação é no âmbito da igualdade de género, que também é útil para o futebol, embora a minha investigação em concreto não seja sobre o desporto.
E a que conclusões tens chegado que possas transpor para a realidade do futebol feminino?
Acho que esta questão é transversal a todas as atividades: embora a mulher esteja envolvida no mercado de trabalho há muitos anos e em igual escala que o homem, tem sempre a dupla tarefa do trabalho profissional e trabalho doméstico/familiar. No nosso caso, no futebol, somos jogadoras amadoras e o reconhecimento é menos visível em todos os campos. Por exemplo, não temos muitas mulheres em cargos de chefia. Em termos de futebol, muito pouca gente sabe quem são as referências no futebol feminino, ao contrário do que acontece no futebol masculino.
Fala-me da tua passagem pelos três clubes que referiste.
O Grupo Desportivo Monte Real é um clube pelo qual tenho um carinho especial. Foi onde comecei e é o clube da minha zona de residência durante a infância e a adolescência. Comecei no Monte Real com 16 anos e entretanto vim estudar para a faculdade em Lisboa. No início continuei a jogar no clube, mas só treinava e jogava uma vez por semana e acabou por fazer sentido procurar outro clube em Lisboa, até porque tinha algumas ambições de eventualmente chegar à seleção e de participar um campeonato mais competitivo. Na altura o Odivelas tinha subido à primeira divisão e foi uma solução. Acho que tinha 24 anos quando comecei a jogar no Odivelas.

Arrependida de teres vindo para Lisboa?
Nada. Aliás, estou arrependida de não ter feito essa transição mais cedo, porque posso não ter tido o rendimento que poderia ter se começasse antes a treinar três vezes por semana.
Como foi a reação dos teus pais, tanto à prática da modalidade como a esta mudança?
Desde sempre me lembro de jogar futebol. Quando eu tinha quatro anos, o meu pai era treinador da equipa do meu irmão e eu ia com eles para os treinos, já era louca pela modalidade. Não sei porquê, foi algo que já nasceu comigo. Ele levava-me para os treinos mas não encarou com muito bons olhos quando eu quis começar a jogar. É normal, as mentalidades eram um pouco conservadoras em relação a isso. Tentei começar a treinar com equipas de rapazes, mas não tive hipóteses. Todos os anos, até aos 16 anos, procurava equipa mas sem sucesso. A partir de uma certa altura, o meu pai habituou-se à ideia e acompanhava-me. Para a minha mãe sempre foi tranquilo e o meu irmão sempre me apoiou também. Sempre que podiam, iam ver os meus jogos.
Então sentiste que da parte da tua família sempre tiveste um apoio que às vezes é difícil ter.
Sim, sinto-me uma privilegiada. Houve o choque para o meu pai, que achava que o futebol não era para raparigas, mas depressa se habituou à ideia de eu querer jogar.
Desde esse momento até aos dias de hoje, como vês a evolução do futebol feminino?
É completamente diferente. Houve uma evolução tremenda. Passaram 15 anos e vejo uma evolução muito grande, a começar pelo modo como as competições estão estruturadas. Aos 19 anos, pude disputar o Campeonato Nacional. Depois surgiu também a Seleção sub-19. Sei que se pensou em fazer uma Seleção sub-21 e é pena isso não ter avançado porque é necessário. Entretanto houve jogadoras que começaram a sair do país e houve uma dedicação muito maior por parte da Federação no Futebol Feminino.
Chegaste a jogar na Seleção?
Não. Fui a três estágios da Seleção principal e foi uma experiência fantástica, das melhores que tive como futebolista. Tinha o sonho de ser internacional mas não chegou a concretizar-se.
Como tens visto o trabalho que tem sido feito, não só pela Federação, mas também pelo Sindicato, no sentido de melhorar o futebol feminino nacional?
Houve alguns projetos interessantes, nomeadamente o Jogo das Raparigas. Entretanto o surgimento do interesse do SJPF pelo futebol feminino, que tem sido extremamente importante, tanto a nível de divulgação como a atribuição dos prémios individuais para as jogadoras, até porque dão um incentivo extra às atletas e dá-lhes outro tipo de visibilidade.
Tens algum ídolo no futebol?
Tenho referências, desde miúda, embora não houvesse muita informação sobre futebol feminino. Mas lembro-me desde pequena, já não me lembro bem onde, de ouvir falar de uma jogadora chamada Carla Couto [risos]. Não estou a dizer isto por me estares a fazer esta entrevista, é mesmo verdade. E lembro-me que na altura, eu tinha para aí 12 anos, que a minha ideia era ser como a Carla Couto, que era uma grande promessa e jogar num grande clube como o Sporting. Também gostava muito da Mia Hamm, cheguei a vê-la jogar em alguns Mundiais.
Que objetivo gostavas muito de alcançar?
O sonho era ser campeã nacional. Acho que esse é o objetivo principal coletivo de qualquer jogadora. Também queria ganhar a Taça de Portugal. Tive a sorte de estar duas vezes na final mas não conseguimos ganhar. Em termos individuais tinha o objetivo de ser internacional pelo menos uma vez, mas não se concretizou.
Até quando temos a Susana a jogar?
Já estou completamente decidida a terminar a carreira este ano.
Tão nova?
Eu tenho 31 anos… Eu sei que isso é relativo [risos]. Vou acabar o doutoramento este ano, que é uma coisa que me consome muito tempo. Além disso, em termos de saúde, tenho duas hérnias discais, que também me limitam muito na prática do desporto. Tenho de me mentalizar que não dá mais. Este ano já foi uma espécie de bónus e fi-lo com sacrifício. Vou ficar por aqui, pelo menos em termos oficiais porque não vou deixar de jogar futebol. É uma decisão bastante ponderada.
Como vais compensar esse tempo com a falta do futebol?
O futebol nunca vai deixar de fazer parte da minha vida. Vou acompanhar sempre o Futebol Benfica e o futebol feminino. Aquilo que eu puder fazer em termos de promoção de futebol feminino, se for solicitada, estarei disponível. Isto evoluiu tanto nestes 15 anos que acho que podemos chegar a um patamar muito elevado.

A jogadora portuguesa, acabando a sua carreira, não tem perspetivas de se manter ligada ao futebol. Tens essa pretensão?
Eu gostava que isso acontecesse, se eu sentir que estou realmente a fazer a diferença. Nós estamos numa fase em que há mais olhos postos no futebol feminino e eu não posso simplesmente virar as costas à modalidade. Estive 15 anos ligada ao futebol, e embora não tenha muito tempo para lhe dedicar, não posso renunciar a esta parte da minha vida se tiver oportunidade.
Que medidas seria importante implementar para dar mais visibilidade ao futebol feminino?
Eu tenho noção que o futebol é uma parte da vida das jogadoras, uma vez que não é a sua atividade principal, porque somos amadoras e temos uma atividade paralela ao futebol. A principal medida é de base e está já a ser tomada por alguns clubes: é a formação. É as miúdas tomarem consciência que podem vir a ter um futuro no futebol. E se forem dadas condições… É difícil os clubes investirem no futebol feminino, mas há pequenas coisas que se podem fazer, como ajudas de custo, por exemplo, que podem marcar pela diferença. Só assim podemos criar um futebol feminino forte que esteja nas principais competições.
O que achas que ainda falta para chegarmos a esse patamar?
Sendo realista, acho que o caminho mais rápido seria termos um campeonato, pelo menos, semi-profissional. Sei que isso é complicado a curto-prazo, mas temos grande parte das nossas jogadoras a sair do país por questões monetárias, porque o que elas querem fazer da vida é jogar futebol. Não sendo por aí, é através da aposta fortíssima na formação e, a médio-prazo, conseguir manter as jogadoras ca mas para isso é preciso dinheiro.
Como vês o trabalho que o SJPF tem desenvolvido no futebol feminino?
Com muito bons olhos, só há coisas boas a dizer do surgimento desse interesse e do trabalho do Sindicato. Sei que têm visitado os clubes e que há uma proximidade junto das jogadoras. Mesmo o separador do site para o futebol feminino é fantástico. Qualquer jogador de futebol que vá ao site consegue ter informação sobre o futebol feminino. O conselho que posso dar é que, quem não for sócia, que se associe ao Sindicato porque isso só pode trazer vantagens para a sua prática desportiva.
Ficou alguma coisa por fazer?
Às vezes penso que nem sempre fui uma jogadora tão dedicada como podia ter sido. Talvez tivesse conseguido chegar mais longe. Tenho muita pena de não ter ganho um título pelo Fofó, que acaba por ser um clube especial para mim. Tenho pena de não ter sido internacional, mas tive a oportunidade de ser chamada e muitas jogadoras não o conseguem. Acho que me posso considerar relativamente realizada.
Sentes-te feliz com a carreira que tiveste?
Sinto, sim. Não sei se teria feito as coisas de forma diferente. Se tivesse nascido uns anos depois, talvez tivesse apostado em sair do País. Mas nos anos em que estive no futebol, fiz o que tinha de fazer que era estudar e investir na minha formação, ao mesmo tempo em que me dedicava de alma e coração ao futebol.
Uma palavra para quem quer começar a jogar futebol.
Que sigam o sonho, que não desistam. O futebol feminino tem pernas para andar em Portugal, porque temos muitas jogadoras de qualidade e cada vez mais condições para a prática do futebol.
Perfil
Nome: Susana Maria Ramalho Marques
Local e data de nascimento: Vieira de Leiria, 29 de Março de 1983
Profissão: Bolseira de investigação (a tirar um doutoramento em Sociologia)
Ano em que começou a jogar futebol: 1999
Clubes: Grupo Desportivo de Monte Real, Odivelas Futebol Clube e Clube Futebol Benfica
Posição: Média