“O futebol vai muito para além de uma bola”
Ao fim de mais de duas décadas no futebol nacional (e não só), GASPAR despede-se dos relvados com uma grande entrevista ao SJPF.
Praticou várias modalidades: porque decidiu enveredar pelo futebol?
Comecei em miúdo, o meu pai também jogava futebol no Marco de Canaveses com um irmão. Se calhar está-me no sangue, mas lembro-me perfeitamente da minha primeira bola de futebol, do primeiro equipamento… Só por aí já conseguimos ver que o futebol era algo especial. Comecei a jogar aquele bom futebol que já não existe, de rua ou no recreio. Jogava quase no centro da Trofa, numa rotunda, e os portões das garagens eram as balizas. Era na rua que, antes ou depois de jantar, mais jogávamos futebol.
Como foram os primeiros tempos como futebolista profissional?
Comecei a jogar mais a sério no Trofense. Desde os seis ou sete anos que lá joguei, apesar de ter feito um interregno para praticar outras modalidades de ginásio. Mas fiquei pelo Trofense até cumprir o sonho de miúdo de poder representar o clube. Isto porque, aos domingos, o ritual de família era ir ver jogar o Trofense e, por isso, o normal seria sempre jogar ali. O que é certo é que a oportunidade surgiu e consegui fazer parte do plantel. Nessa altura, fui dispensado e estive na iminência de ser emprestado ao Mougadense, que estava na segunda distrital. Mas há uma mudança de treinador e o novo técnico, Nicolau Vaqueiro, garantiu-me que não ia sair do clube. Fui convocado duas vezes, o que para mim era impensável, e acabei por entrar numa partida em Alpendorada. Joguei a trinco, veja bem. Estamos a vencer 1-0 e o Alpendorada tinha empatado. Fazemos o 2-1 e, logo depois de entrar, faço o 3-1. Foi uma estreia inesquecível. A partir daí comecei a ser convocado mais vezes e joguei a titular. Foram dois bons anos de Trofense. Depois saí para o Tirsense, para a terra onde nasci. Fiz um treino e, no final, convidam-me a ficar, num clube que estava na primeira divisão. Estava encantado da vida. Ao segundo dia, já era chamado para integrar o estágio com a equipa principal, que estava no Algarve. Era um miúdo de 19 anos, nessa altura. Depois ainda tenho a possibilidade de ir para o Setúbal por um ano. Na mesma altura tive outras propostas: o Belenenses por quatro anos, o Farense por quatro anos e o Chaves por três anos. Todos garantiam um bom ordenado para um rapaz de 19 anos, mas o certo é que eu estava interessado num contrato curto, embora ganhasse menos de metade do que ofereciam os outros clubes. A verdade é que em Outubro o Benfica oferece-me um pré-contrato, mas no final da época acabei por ir para o FC Porto.
Onde foi campeão e ganhou a Taça em 1997/98. O que recorda?
É daquelas coisas que fazemos e depois de olharmos para ela quase não acreditamos que a fizemos. Cheguei ao FC Porto e fiz alguns jogos a titular, estava a viver um sonho. Acho que só ganhei consciência de tudo aquilo quando estou na Avenida dos Aliados e vejo aquele mar de gente a berrar, feliz pela conquista do título. Como deve imaginar, estar na terceira divisão e, passadas duas épocas, estar a ser campeão nacional e jogar na Liga dos Campeões é uma coisa que não acontece todos os dias.
Como foi jogar a Champions nesse ano?
Há pouco tempo fui mostrar aos meus filhos onde me equipei no Santiago Bernabéu e dei conta de que me lembrava de tudo dessa noite. Houve outros jogos, como o Rosenborg, mas jogar ali contra o Real Madrid, num estádio completamente cheio, era dar conta de que o sonho não tinha fim. Lembrar o estádio do Trofense com pouco mais de umas dezenas de pessoas e dar por mim ali, a ser visto por mais de 90 mil, era uma transição enorme.
Como aconteceu ir parar a França, ao Ajaccio?
Tive oportunidade de jogar lá fora e não digo que me arrependo, mas quando somos miúdos, não temos grande noção das coisas. Convidaram-me para jogar em Inglaterra e recusei as propostas do Leeds e do Tottenham, embora considere a liga inglesa o melhor campeonato do Mundo. Antes disso ainda me tinham convidado para ir para o Rayo Vallecano. A hipótese de ir para França surgiu quando a pessoa que veio a Portugal assistir a uns jogos do Gil Vicente, por causa de um outro defesa-central, acabou por se interessar em mim. E assim foi, fui jogar para a Córsega com um contrato de três anos. O futebol ali é muito diferente do português. Mesmo em termos de assistências de público no estádio rondava os 20 mil por jogo, em média. Em Portugal brincamos ao futebol, foi o que percebi. Lá fora é que há futebol a sério.
Muitas histórias – quais são as mais marcantes?
Há tantas… Aconteceu-me uma coisa impensável, que não deixa de ter a sua piada, que foi um colega do Rio Ave adormecer durante uma palestra do treinador. Por exemplo, numa ocasião em França, vencemos um jogo por 2-0 frente ao Lille, no qual eu participei. No final do jogo, eu estava cansadíssimo, e adormeci. Um colega meu vira-se para mim, com alguma arrogância, e disse-me que não tinha jeito nenhum estar ali a dormir, insinuando que eu levava uma vida pouco regrada. O certo é que ele não foi muito correcto comigo e respondi-lhe de impulso: ‘Ficas a saber que eu não dormi na noite passada, vim para Lille, joguei, vou chegar a Ajaccio e provavelmente também não vou dormir, vou festejar, rijo como o aço. Tu foste deitar-te às nove da noite, comeste saladinha ao jantar, levantaste-te, jogaste meia dúzia de minutos e lesionaste-te’ [risos]. Outra: quando estávamos a festejar o título do FC Porto, lembro-me de o Secretário me ter visto a olhar para o troféu e dizer-me: ‘Não corras não, e não te esforces por ganhar dinheiro, que depois os teus filhos vão querer leite e tu vais andar a dar-lhes taças para eles comerem’. Gosto de contar estas histórias, principalmente aos mais novos, para que eles tirem as suas próprias lições. O futebol vai muito para além de uma bola e onze para cada lado.
Qual foi o clube onde gostou mais de jogar?
É difícil de responder, até porque passei por muitos. Todos me marcaram. Houve o clube que me ensinou a jogar, houve outro que me abriu as portas da primeira divisão, outro ainda que me faz ser campeão… Evidentemente que o Rio Ave tem um papel ainda mais especial, porque fui capitão e estive lá cinco anos.
Era um central goleador. Qual era o segredo para o faro?
Ter 1,90m [risos]. É certo que treinava os cantos e os livres e, evidentemente, aproveitava esse trabalho para nos jogos aplicar a estratégia e a minha ratice.
Qual era o seu papel como capitão nas equipas por onde passou?
Eu era os olhos do treinador em campo. Zelava pelo bem-estar e pelos interesses do treinador e dos jogadores, mas isso não quer dizer que o capitão seja sempre um exemplo a seguir. Sendo capitão, não deixava de ser como era, mas dentro de campo tinha de estar com uma sintonia a 100 por cento com o treinador.
Agora, à distância, quais eram os seus pontos fortes e fracos como jogador?
O meu ponto forte era o jogo aéreo, mas tinha um óptimo passe, fosse longo ou curto. Não tinha medo de assumir o jogo de bola no pé, de trás para a frente, para fazer o desequilíbrio. Não tinha medo de assumir o jogo. Em termos de pontos fracos, a nível técnico não era muito evoluído.
Porque decidiu acabar a carreira?
Sobretudo por já ter 39 anos e ninguém me quis [risos]. Não, estou a brincar. Passa mais pela questão psicológica, não física. No Campeonato Nacional de Seniores, ainda era capaz de dar uma perninha. No ano passado fiz 31 jogos e treinava todos os dias. Mas sentia que a cabeça já não estava para ali virada.
Alguma vez foi vítima de salários em atraso?
É como já lhe disse: em Portugal brinca-se ao futebol. Houve uma circunstância em que só eu e mais três colegas tínhamos tudo pago e o resto do plantel não tinha os ordenados em dia. Nessa altura, alertei os meus companheiros para reivindicarem aquilo que não estava a ser justo e apelei a que fossem falar com os dirigentes. Noutra altura aconteceu o oposto: o plantel quase todo recebeu e eu não. Isto acontece muito cá. Em França, se algum clube falha com pagamentos desce automaticamente de divisão. Não há garantias nem mezinhas.
Qual é a diferença entre o mundo do futebol hoje e o de quando começou a jogar?
É óbvio que houve muitas mudanças. Só a Lei Bosman veio mudar muito o futebol, bem como a chegada dos empresários. A nível do futebol jogado, também houve mudanças, claro. O futebol é diferente. Existem grandes diferenças na metodologia do treino, também, que vieram revolucionar tudo. E isso deve-se ao Mourinho, que deixou de ser só treinador para passar a ser também professor. Os jogadores já percebem o porquê de fazer determinadas jogadas em campo. Dantes isso não acontecia.
Acha que os clubes apostam menos nos jovens e nos portugueses?
Os clubes têm de apostar menos. Há menos jogadores disponíveis, porque há uma grande exigência financeira para aprender a jogar futebol. Um miúdo que jogue na rua não tem futuro no futebol. Por isso é natural que os clubes acabem a formar jogadores para clubes maiores e selecções estrangeiras. A Alemanha, quando Portugal a bateu por 3-0 no Euro 2000, percebeu que precisava de formar mais talentos nacionais. Por isso, acho que nós só começamos a trabalhar quando realmente repararmos que não há volta a dar.
Recebeu ajuda do SJPF?
Felizmente nunca precisei de muita coisa.
O que acha do trabalho que o SJPF tem vindo a fazer?
É um trabalho ingrato e extremamente difícil porque, por cada história boa que aparece, surgem muitas más. Nunca me considerei sindicalista mas cheguei a angariar muitos sócios para o Sindicato e tive discussões acesas por causa do SJPF. Não sei por que razão as pessoas têm esta imagem, mas a percentagem de sindicalizados é irrisória. Em França, por exemplo, quando estava a descer as escadas do avião já tinha uma pessoa do Sindicato a convidar-me para ser sócio. Mas em suma, é um trabalho bem feito.
Perfil
Em toda a carreira, Gaspar alcançou dois títulos nacionais: um campeonato e uma Taça de Portugal. Os únicos títulos de Gaspar foram obtidos enquanto jogador do FC Porto, clube onde chegou a disputar a Liga dos Campeões. Para defesa-central, 26 golos numa carreira é um feito. Gaspar aterrorizava as defesas opositoras quando subia à área. O defesa garante que marcava por causa da altura, do “treino, da estratégia e da ratice”.