O bom rebelde
A carreira de Carlos Martins tem sido marcada por fases complicadas, às quais se seguem vitórias pessoais e colectivas. É assim que se escrevem as histórias dos verdadeiros campeões.
Desde os 11 anos, quando trocou Oliveira do Hospital por Lisboa para jogar no Sporting, que tem sido um exemplo pela capacidade que sempre demonstrou na hora de enfrentar as adversidades. E confirmámos que os seus primeiros tempos em Lisboa não foram fáceis. "O meu pai queria que viesse e a minha mãe chorava para que não viesse. Fiquei dividido. Então, apesar de o Sporting me querer, quis estar uma semana à experiência para ver se me aguentava. Disse aos meus pais que estava capacitado para ficar. Com 13 anos, estava na escola e pedi à professora para sair da sala para ir à casa-de-banho. Liguei aos meus pais a dizer que já não aguentava e pedi-lhes para me virem buscar. E interrompi a minha estadia aqui durante um ano e meio."
Apesar da aparente desistência, o sonho de singrar no futebol não desapareceu. Pelo contrário, voltou ainda com mais determinação. "Regressei quando tinha 15 anos e, aí sim, já vinha com outra mentalidade. Ainda hoje tenho um trauma com isto. Vejo um miúdo e pergunto-lhe sempre a idade. Quando me dizem que têm 10 ou 11 anos lembro-me que foi na altura em que deixei a minha aldeia e vim para aqui sozinho. Mas fez-me crescer mais rápido, aprendi coisas mais rápido e não estou arrependido de nada. Acho que ganhei muita força quando vim viver sozinho com 11 anos. É muito difícil em termos afectivos, mas no futuro ganhas anticorpos para lutares contra isso."
Após sete anos nos seniores do Sporting, com empréstimos ao Campomaiorense e à Académica pelo meio, Carlos Martins saiu em definitivo de Alvalade e assinou pelo Recreativo de Huelva.
"Com o Paulo Bento não joguei os últimos dez jogos do campeonato. Saí para Huelva e fiz um grande campeonato em Espanha. Marquei 12 golos, penso eu, por uma equipa que desceu de divisão, e fiz não sei quantas assistências para o Sinama-Pongolle." Após esta época em grande plano pelo conjunto andaluz, apareceu o convite do Benfica, o eterno rival do clube no qual cresceu para o futebol. Uma vez mais, mostrou o estofo necessário para aceitar o desafio.
"Não posso esconder que tudo o que sou devo em grande parte ao Sporting, passei ali 16 anos. É normal que tenha este clube no meu coração. Nunca pensei jogar no Benfica, mas a carreira profissional é isto mesmo. Temos uma família e objectivos para concretizar. Foi o Rui Costa, que sempre foi um ídolo, que me ligou na altura. Senti-me logo motivado."
Mas revelou novamente a sua forte personalidade e, apesar das dificuldades, foi capaz de resistir. "Ao início confesso que não foi fácil, parece que estava estranho. Um jogador pode ter o seu clube e os seus amigos do outro lado, mas quando entra para dentro de campo esquece isso tudo. Simplesmente quer ganhar, seja pelo Benfica, pelo Arrentela ou pelo Barcelona. Ou quer esteja a jogar contra o irmão, contra o pai ou contra a mãe. Não interessa, quer ganhar. Aliás, quando jogava contra o Sporting queria ganhar não por um mas por sete."
Vencer pelo filho
A batalha da adaptação seria vencida, como todas as barreiras que têm surgido no caminho de Carlos Martins. A maior de todas aconteceu durante a época 2011/12, quando esteve emprestado pelo Benfica aos espanhóis do Granada. O filho Gustavo começou a ter nódoas negras no corpo, uma simples pancada era suficiente. Foram os primeiros sintomas para se descobrir que tinha uma aplasia medular. "Um dia, estávamos em Espanha, caiu-lhe uma gaveta em cima e ele ficou com um grande hematoma na perna. A minha mulher achou muito estranho, levou-o ao hospital e ficou logo internado. Foi um momento muito complicado mas que está a ser ultrapassado e temos de pensar positivo. Agora está numa fase muito boa, tomara que continue assim por muito tempo. É um momento bom para ele, este tempo também ajuda e estamos muito felizes. Sabemos que é uma batalha que vai ser para a vida, mas começamos a ganhar anticorpos para eles também e aprender a viver com eles."
Naturalmente, o futebol passou para segundo plano e foi muito difícil concentrar-se na equipa. Carlos Martins teve a notícia do problema de saúde do filho em Setembro e em Dezembro equacionou abandonar o futebol para se dedicar por inteiro à família. "O meu filho esteve internado muito tempo no hospital e eu vivia lá e a jogar. Mas não estava lá. Fiquei desorientado, não me consigo lembrar de tudo o que fiz. Parece que fiquei bloqueado. Em Janeiro a minha mulher veio para Lisboa para ele ser acompanhado pelo IPO e eu pensei muitas vezes 'o meu filho está lá, o que é que estou aqui a fazer?'. Graças a um amigo, que vai ficar para a vida, é que tive força. Mas a cabeça nunca estava lá. Estive no Granada a 50%. Mesmo assim as pessoas gostaram de mim, do meu trabalho, e é um clube ao qual gostava de retribuir estando bem psicologicamente."
Milhares de pessoas sensibilizaram-se e foram solidárias nesse período. Foi o lado mais bonito do futebol a mobilizar-se por uma causa. Através da situação do Gustavo, Portugal passou de cerca de 80 mil dadores da medula óssea para 300 mil. "Foi impressionante. O meu filho teve uma sorte que um dia há-de retribuir, com certeza. Recebeu cartas da China e uma do presidente do Real Madrid, coisas que jamais pensava que iriam acontecer. Não há vitória nenhuma que se compare. Nada, zero mesmo! O futebol é mais uma distracção e um prazer, isto é que são os problemas", partilha o actual médio do Belenenses.
Sem rancor pelo Benfica
Regressou a Portugal e ao Benfica. Na primeira passagem pela Luz, antes do empréstimo, foi campeão. Mas a segunda experiência, em 2012/13, ficou marcada por um jogo. Na recta final do campeonato, quando as águias lideravam a prova, receberam o Estoril antes do encontro decisivo no Dragão, frente ao FC Porto, na célebre partida resolvida por Kelvin aos 92 minutos.
Foi expulso frente aos canarinhos e passou de herói a vilão. Teve de lidar com as críticas, mas não fugiu. "Não foi fácil. Foram críticas injustas pela proporção que tiveram. Não quer dizer que sacuda a água do capote, porque errei. Principalmente no primeiro amarelo, porque discuti com o árbitro. No segundo penso que vou chegar à bola, é um lance normal. Tive alguma culpa, mas não para se virarem todos contra mim. Mas sei como é o futebol. Fui render o Enzo, que saiu lesionado, e senti que estava a ser o melhor em campo. Ninguém pode dizer que íamos ganhar se estivesse lá. Mas houve interesses e destruíram-me a carreira. Mandaram-me para a equipa B. Mas não guardo rancor."
Passou de campeão e internacional a uma época a jogar apenas pela formação secundária dos encarnados. Ficámos curiosos para saber como é que um jogador com este estatuto encontrou ânimo para jogar na Segunda Liga. "Ânimo tive de ter, porque estava a defender um clube prestigiado e do qual só guardo boas recordações, não quero ficar com as más. Foi um clube que me projectou, no qual fui campeão, onde deixei amigos, portanto só me quero lembrar das coisas boas. Agora vontade de jogar não tinha", confessa.
A mudança foi abismal e o jogador contou com o apoio do Sindicato para o ajudar a superar o período conturbado. "É muito difícil estar habituado a jogar para 60 mil pessoas e, de um dia para o outro, jogar com miúdos de 17/18 anos. Aprendi muito com eles, fartava-me de rir. Mas em termos de motivação, não a tinha. Só tenho a falar bem de todos, mas pensei em abandonar. Tive muito apoio do Dr. Joaquim Evangelista, mas, principalmente, pelo meu filho, tive ânimo para continuar", revela.
Nova vida em Belém
Depois de um ano relegado para a equipa B do Benfica, esteve meia época apenas a treinar no Restelo e só em Janeiro voltou a poder jogar. "Foi muito complicado, passou-me muita coisa pela cabeça. Tive a sorte de ter o acompanhamento da minha família. Fui aguentando, sabendo que o que mais queria era resolver a minha situação para voltar a jogar, não só por mim mas também pelos meus filhos."
Foram eles que sempre lhe deram a força e a motivação necessária para não desistir, quando muitas vezes seria o caminho mais fácil. "Principalmente o Gustavo, que percebe mais as coisas. Perguntava-me quando é que ia voltar a jogar e foi a isso que me agarrei, senão se calhar já tinha abandonado o futebol."
Voltou à competição e acabou a época com o Belenenses na Liga Europa. Uma campanha só ao nível dos melhores sonhos. "Tinha muita vontade de voltar a jogar ao mais alto nível e isso foi proporcionado pelo Belenenses. Não queria sair da zona de Lisboa, por questões relacionadas com a família. Penso que fiz uma boa escolha, a época correu-me muito bem e estamos na Europa", diz orgulhoso pelo bom trabalho.
Além da titularidade, Carlos Martins também mereceu a confiança do treinador para envergar a braçadeira de capitão. Sinal da sua importância no grupo e larga experiência. "O míster [Jorge Simão] disse-me que ia ser capitão. Normalmente isto é pela antiguidade. Disse-lhe que não fazia questão, mas ele assumiu que eu devia de ser capitão e claro que gostei de o ser. Mas não é uma situação com a qual viva obcecado."
No Restelo encontrou um plantel muito jovem e o internacional português sente-se uma voz importante no grupo pelo estatuto que tem junto dos colegas. "É normal, também já estive naquela fase de ser novo e olhar para os mais velhos. Tenho essa consciência e muitas das atitudes que tomo penso que está sempre alguém a olhar para mim. É uma responsabilidade acrescida, mas gosto de sentir isso", refere Carlos Martins, que também tem o cuidado de aconselhar os mais jovens. "Tive colegas como o Sá Pinto ou o Pedro Barbosa, que faziam esse acompanhamento para os mais jovens. Agora também quero passar essa parte para os mais novos", admite.
Selecção: um sonho sempre presente
Depois de um ano em excelente plano, individual e colectivamente, impôs-se a questão da Selecção. Teve oportunidade de jogar pelos AA em 17 ocasiões. Apesar de alguma veterania, seria legítimo pensar num regresso caso mantenha o nível que exibiu durante estes meses ao serviço dos azuis do Restelo. "Acreditamos sempre, a esperança é a última coisa a morrer, mas sei que é muito complicado. Sei que se não me tivesse acontecido esta interrupção na minha carreira se calhar estava lá ou tinha mais possibilidades de estar lá, mas o que mais quero neste momento é desfrutar. Sinto-me jovem ainda e quero que os meus filhos tenham orgulho naquilo que sou e naquilo que faço."
Os filhos, sempre presentes no pensamento de Carlos Martins. Teve duas passagens pelo estrangeiro, ambas por Espanha. Será que ainda gostava de experimentar outra liga ou já não se vê a sair de Lisboa? "Neste momento sou mais cauteloso. Gosto mais de olhar para a minha família e vê-los bem. O meu filho tem a casa dele, os médicos e os enfermeiros, gosto de sentir-me assim. Sinto-me bem no Belenenses. Em termos profissionais, agora vamos jogar a Liga Europa. Não é aquilo que desejava, porque sempre quis lutar por títulos, mas em termos afectivos sinto-me em casa", conta.
Apesar desse conforto, Carlos Martins não fecha completamente as portas a uma nova aventura. "O bichinho está cá dentro. Se aparecer alguma coisa que me seduza... Não a mim, mais à minha família. Uma percentagem maior é de ficar, mas também há uma percentagem razoável para ir", admite.
A longa carreira e a experiência adquirida com as vivências extra-futebol moldaram a personalidade de Carlos Martins, que sempre viveu com a fama de ser um enfant terrible do futebol português.
"Tenho a perfeita noção de que as pessoas me viam, ou se calhar vêem, com essa irreverência, mas a situação do meu filho mudou tudo. Se não tivesse vivido esta situação, quando estava na equipa B do Benfica teria reagido muito mal. Mas ganhei uma bagagem forte para saber dosear as coisas, mudei muito a minha forma de estar na vida. Fervia em pouca água. Ainda fervo, mas tenho mais sensibilidade. Podes precisar do teu inimigo para te dar vida, portanto temos de saber relativizar tudo."
A (outra) paixão de Carlos
"É recuperar casas velhas. Sou muito apaixonado por aquilo que gosto. Gosto de futebol e toda a gente vê a forma irreverente como jogo.
E tenho esta paixão. Gosto de pegar numa coisa velha e torná-la bonita. É um trabalho que faço em conjunto com a minha mulher, ela também tem muito bom gosto. E gosto de andar lá a acartar, ir para a obra, todos os dias de manhã, e sair de lá tarde. Não só gosto deste trabalho como é um investimento. No futuro vejo-me a estar sempre ligado à família. Quero acompanhar os meus filhos, acima de tudo. Posso vir a ter algum cargo no futebol, mas de momento não me passa pela cabeça. Imagino-me a depender de mim em termos de horários.
Adoro ir pôr os meus filhos à escola. Quero aproveitar o momento. Sei que as coisas também mudam de um momento para o outro."