"Se calhar o meu crime é fazer golos"
Nos clubes e na selecção, nunca João Tomás, o avançado do Rio Ave, deixou de fazer aquilo para o que foi contratado pelos clubes: marcar golos.
Faltam pontas-de-lança portugueses à Liga Sagres? Se calhar é melhor pensar duas vezes antes de assumir um veredicto tão irreversível. Enquanto a amnésia dura em relação a si, João Tomás promete resistir. Pelo menos, mais oito meses. Até ao Mundial 2010.
Como é que se encaixa no debate nacional sobre a escassez de pontas-de-lança, quando a sua vida foi sempre marcar golos? Sente-se esquecido?
Não propriamente esquecido. Sinto que Portugal é um país curioso, onde as pessoas pensam que um jogador com mais de 30 anos está acabado para o futebol. Tenho 34 anos, marco golos, sinto-me bem e deito-me todos os dias com a consciência tranquila. O campeonato português recebe todos os anos novas enxurradas de jogadores estrangeiros, muitos deles de uma qualidade que não acrescenta nada às equipas. Note-se que não tenho nada contra os jogadores estrangeiros, mas acho que o jogador português devia ser mais defendido. Principalmente os jovens jogadores, que saem da formação e só encontram dificuldades ou obstáculos.
É mais difícil apostar num jogador português do que num estrangeiro?
É o que parece, pelo menos. Uma das coisas que se dizem sobre os jovens é que não têm experiência. Isso é verdade. Mas a experiência não se compra num supermercado, adquire-se com jogos. Mas depois não se abre um espaço de afirmação aos jovens, os lugares estão tapados. Estou num clube onde os jovens são valorizados, o treinador aposta neles. O Fábio Faria é um jovem. Está a ter no Rio Ave e com este treinador as oportunidades que lhe faltaram noutras ocasiões. Já tem grandes clubes à espreita. O Fábio Coentrão estreou-se também neste clube e com Carlos Brito com 17 anos. É um grande talento. Parece uma coisa fácil, mas são poucos os treinadores e os clubes que o fazem. É inexplicável.
Mas não apenas os jovens jogadores portugueses que se podem queixar da falta de oportunidades. No seu caso, também houve um grande desaproveitamento do seu talento para fazer golos?
Se calhar esse é o meu crime. Faço golos. As pessoas não estão habituadas a um ponta-de-lança português que faça golos. Não sei explicar. O que sei é que não foi há muito tempo que regressei à selecção nacional. Estava num grande momento de forma, era o melhor marcador do campeonato, no Braga, antes de me lesionar, por quatro meses. Nessa altura, fui teimoso, fui persistente, acreditei que podia voltar à selecção e voltei. Repare, no Benfica, fui o segundo melhor marcador da equipa, atrás de Van Hooidjonk, com menos um golo marcado. Em Sevilha, no Bétis, marquei muitos golos, voltei a Portugal e no Braga, antes de regressar à selecção estava muito bem, marcava golos. Tive a lesão e depois perdi o lugar. Na época seguinte fiz um golo em Braga, mas não foi um golo qualquer...
Deu o apuramento ao Sp. Braga para as competições europeias, no ano seguinte.
Pois, foi no jogo com a Académica. O mais curioso é que passei a época a dizer aos meus colegas, no balneário, que seria eu a marcar o golo mais importante da época. E assim foi. Nessa altura o titular era o Linz, tudo certo, após a minha lesão foi ele que me substituiu e fê-lo bem, a marcar golos. O treinador não podia fazer outra coisa, porque o Linz estava a jogar bem. Foi uma decisão justa. O que aconteceu a seguir é que não estava nas minhas previsões, porque antes da lesão, eu estava a fazer o que sempre fiz, a marcar golos, em boa forma. E por isso, terminando o contrato com o Braga, sempre esperei por uma oportunidade de me manter na Liga Sagres.
Por que é que isso não aconteceu?
Porque inexplicavelmente ninguém me convidou. Todos se esqueceram de mim na Liga Sagres. É o exemplo de que as oportunidades que são dadas aos jogadores, novos ou mais velhos, na carreira de um jogador, são fundamentais. Ninguém consegue demonstrar o seu valor sem uma oportunidade. É isso que acontece com muitos jovens do nosso futebol, com talento, com formação e com vontade de agarrar uma oportunidade. E é tudo o que lhes falta. A mim faltou-me essa oportunidade. Não consegui perceber, tinha regressado à selecção nacional há poucos meses, estava a marcar golos antes de me lesionar no Braga, tive uma carreira honesta, decente e a marcar golos e, de repente, estava fora da Liga Sagres. Mais uma vez, chegaram ao nosso campeonato vários jogadores estrangeiros, uns partiram logo a seguir da mesma forma que chegaram, quase sem se dar por isso, e eu fui jogar para a segunda Liga. Repare que no Braga marquei 50 golos em três anos.
Chegou ao Boavista num dos piores momentos da história do clube.
Honrou-me bastante jogar no Boavista. Grande clube, grande história e grande tradição. E naquela altura, também, grandes problemas. Mas foi o clube que permitiu que eu continuasse a jogar e a marcar golos. Fui, durante a época, o melhor marcador português das competições profissionais. E deu-me a tal oportunidade que outros não quiseram ou não souberam dar. Devo muito ao Boavista, muito mais do que o clube me deve, porque recuperei a minha auto-estima e renasci para os golos e para a ribalta.
O regresso à Liga Sagres dá-se num clube da classe média-baixa do nosso campeonato, mas que está a fazer um excepcional campeonato. É uma espécie de regresso à casa de partida, já que representava a Académica de Coimbra antes de se transferir para o Benfica?
É um bocadinho isso, é uma espécie de regresso às origens, com a diferença de que não tenho agora a expectativa de voltar a jogar num grande. Mas é um facto que o Rio Ave não é dos maiores clubes do campeonato, mas é um clube que me satisfaz bastante. Todos os dias acordo feliz para mais um dia de treinos, porque estou a gosto neste clube, que me trata bem, que me proporciona bem-estar e porque tem pessoas maravilhosas. É um clube de gente humilde como eu, de gente de trabalho e que ama o jogo e a equipa. É um clube que se está a estruturar para o futuro e se conseguir estabilidade na Liga Sagres nos próximos dois ou três anos, vai conseguir dar um salto qualitativo. Gosto muito do Rio Ave e sinto-me muito confortável em Vila do Conde.
Onde sempre se sentiu confortável foi na selecção. Ainda tenciona regressar ou já desistiu da ideia?
Só desistirei da ideia quando terminar a carreira. Ou melhor, quando for divulgada a lista de jogadores que irão à África do Sul e eu não estiver lá. Até isso acontecer, não vou desistir. Tenho pela frente mais oito meses de persistência. A mesma que me levou de novo à selecção quando ninguém esperava, após seis anos de ausência. Marquei tantos golos que Scolari lembrou-se de mim. E nessa altura ninguém, esperava que pudesse regressar. Sinto que posso ser uma das surpresas que o Carlos Queiroz possa ter guardadas para o Mundial. Resta-me continuar a marcar golos, para chamar a atenção.
Mas sente que ainda mantém condições para jogar na selecção nacional?
Tenho 34 anos de idade, sinto-me bem, marco golos, então, porque não? Joguei no Benfica com o Van Hooidjonk, que já tinha quase a minha idade quando chegou a Portugal e sempre o vi a ir à selecção nacional holandesa. E eram convocados jogadores como o Jimmy Hasselbaink, o Van Nistelrooy e o Makaay. Um destes dias, li uma entrevista de Djoikovic, um dos melhores jogadores de ténis em todo o Mundo, em que ele dizia que devia ter nascido dez anos antes. Percebo porquê. Teria sido o melhor do mundo e não teria apanhado o Nadal, o Federer e até o Sampras na fase terminal da sua carreira. Comigo é o mesmo. Quando cheguei à selecção, os atacantes eram o Pauleta, o Sá Pinto, o João Vieira Pinto, o Nuno Gomes. E mesmo assim consegui jogar na selecção nacional, o que não era fácil, com tantos jogadores para o ataque da selecção. Sinto que seria mais fácil agora. Devia ter menos dez anos. O próprio Nuno Gomes, agora com 33 anos, deixou de jogar na selecção. Porque dá-se um valor exagerado em Portugal à idade dos jogadores.
Acha que é por isso que não é convocado?
Sinto que pode ser. Estão sempre a dizer que a selecção não tem jogadores que marquem golos. Naturalizou-se mais um jogador para tapar insuficiência na selecção, daí que seja legítimo pensar que não sou convocado para a selecção porque já não devo ter idade para lá voltar. Nunca deixei de marcar golos, por isso, não se pode alegar que seja uma questão de rendimento ou qualidade. Continuam a ser os mesmos de sempre, Só pode ser por isso.
Com ou sem João Tomás, acha que a selecção nacional pode assegurar uma boa participação no Mundial?
Tem talento para isso, bons jogadores, um deles considerado o melhor jogador do Mundo. Como todas as selecções, tem virtudes e tem defeitos. Se conseguir que as virtudes superem os defeitos, teremos uma boa participação no Mundial. É importante para o futebol português, com uma imagem muito afectada no exterior, que a selecção consiga fazer um bom Mundial.
São casos a mais, dificuldades extremas de sobrevivência. O futebol português chegou a um ponto de ruptura?
Não gosto muito de discutir o futebol fora das quatro linhas, mas é um facto que se cometeram exageros durante muito tempo. Só assim é que se consegue explicar que muitos clubes não consigam cumprir com os seus compromissos. Isto afecta a credibilidade de qualquer actividade e sobretudo o futebol que tem uma grande exposição nos meios de comunicação social. Já passei por situações de salários em atraso, sei o que isso é, vi as dificuldades que alguns colegas passaram e posso dizer que é indigno que isso aconteça. Como aliás é indigno que isso possa acontecer noutra actividade qualquer. Não é só o futebol que tem salários em atraso.
Como é que analisa que a intervenção do Sindicato na denúncia e na resolução destes casos que afectam a dignidade dos jogadores e das próprias competições?
Vejo que por culpa dos jogadores, o Sindicato ainda não tem a força que devia ter. Porque no dia em que o Sindicato tiver 50 mil filiados em vez de ter cinco mil, terá uma força muito maior para impor as mudanças que são necessárias ao futebol português. Até isso acontecer, o Sindicato estará sempre limitado a uma intervenção de denúncia. Eu, quando cheguei ao Bétis, em 2001, deparei-me com uma situação em que os jogadores forçaram a Liga espanhola a parar durante três semanas, na altura do Natal. Os jogadores, o Sindicato conseguiu impor essa paragem, porque os jogadores se recusavam a jogar. Isso forçou a Liga e as entidades patronais do futebol espanhol a parar. Em Portugal, isso não seria possível, porque os jogadores não querem. É como a questão dos salários em atraso, os jogadores são apenas sensíveis ao assunto quando o problema lhes toca. Os jogadores devem filar-se no Sindicato, devem procurar assistência e ajuda. E deve acabar o crime que é ver jogadores nas divisões secundárias a ganhar o salário mínimo e a não ocuparem o seu tempo com outras actividades, porque nem sempre os clubes permitem acabar com este falso profissionalismo. E no fim da carreira, o que vão fazer estes jogadores? Não conseguiram pagar a casa, o carro, estão habituados a uma vida de ócio e depois?
E sem formação profissional que lhes permita investir noutro futuro?
Vou dar-lhe o meu caso concreto. No início do meu último ano de contrato com a Académica tomei uma decisão. Ou invisto nos estudos a sério, porque não estava a conseguir estudar como deve ser, enquanto jogava futebol profissional, ou então fazia uma grande época e conseguia uma transferência para um grande. Falei com os meus pais, a minha mulher - na altura, minha namorada - e disse-lhes: «Ou me transfiro no final da época para um grande clube, ou desisto da carreira e invisto nos estudos». Assim foi, fiz uma grande época, no final da época transferi-me para o Benfica e o resto todos conhecem. De outro modo, teria desistido de jogar futebol e apostaria no meu curso e numa carreira de professor. Este é o conselho que posso dar aos jogadores a quem o futebol não consiga dar a oportunidade de garantir a sua independência financeira. Não abdiquem dos estudos e da formação profissional e de uma perspectiva futura de construir uma carreira alternativa. Porque o futebol é muito bonito, mas também pode ser muito traiçoeiro.