"Temos que chegar onde o Racismo está enraizado"
Abel Xavier considera-se um cidadão do Mundo e aceitou o desafio do SJPF para ser o embaixador da Semana Contra o Racismo e Violência no Desporto, que decorreu em Lisboa.
“Existem pessoas que se aproveitam desta grande indústria [do futebol] para propagar determinados comportamentos”
Abel Xavier (Nampula, 30 de Novembro de 1972) jogou em 14 clubes de oito países diferentes. Português com sangue africano, fez carreira na Europa e acabou-a na América, chegou à Selecção Portuguesa (20 internacionalizações; 2 golos), disputou um Europeu e um Mundial e tornou-se num dos ícones da sua geração, fruto de uma personalidade forte, de uma imagem característica e de um discurso marcante, capaz de abordar temas que vão do futebol até à religião. Abel Xavier considera-se um cidadão do Mundo e aceitou o desafio do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol para ser o embaixador da Semana contra o Racismo e Violência vno Desporto, que decorreu entre 24 de Fevereiro e 2 de Março.
Ficámos com a ideia de que aceitou com grande entusiasmo o convite para ser o embaixador da Semana Contra o Racismo e Violência no Desporto.
Eu tenho um grande respeito e consideração pelas pessoas e instituições que lutam por causas nobres. Aceitei o convite do Sindicato dos Jogadores e do presidente Joaquim Evangelista com muita satisfação.
O racismo afectou-o na sua carreira?
Não podemos esconder a verdade: existe racismo em vários sectores da sociedade. No futebol, o que acontece é que por vezes existem pessoas que se aproveitam desta grande indústria para propagar determinados comportamentos que simplesmente não deviam existir no século XXI. Por razões óbvias, senti o racismo. Até antes
O racismo afectou-o na sua carreira?
Não podemos esconder a verdade: existe racismo em vários sectores da sociedade. No futebol, o que acontece é que por vezes existem pessoas que se aproveitam desta grande indústria para propagar determinados comportamentos que simplesmente não deviam existir no século XXI. Por razões óbvias, senti o racismo. Até antes de ser jogador de futebol, na minha infância... a minha família, como tantas outras famílias africanas chegadas a Portugal, sentiu discriminação. Sermos julgados e não termos acesso às mesmas coisas pela cor da pele não é justo. No futebol, o que existe em Portugal é essencialmente rivalidade clubística. O problema do racismo é mais social. Quando cheguei a Portugal, em 1975, chegaram também milhares de pessoas que foram viver em bairros clandestinos. É claro que essas pessoas se fecharam nas comunidades com que se identificavam, mas quando tentaram integrar-se sentiram discriminação.
Mas houve alguma ocasião em que esteve em campo e deixou de sentir prazer em jogar?
Sofri alguns episódios, mas na maioria das vezes é preciso distinguir clubite e fanatismo de racismo e xenofobia. Muitas vezes, o que acontece entre colegas nasce no calor do jogo, na intensidade do momento. É como se um jogador estivesse a fazer tudo para ganhar vantagem sobre o adversário, no fundo é como quando simula uma falta para enganar o árbitro... É claro que às vezes também se ultrapassam todos os limites e aí, claro, defendo castigos exemplares. Se falarmos dos casos de racismo que nascem entre os adeptos, muitas vezes estamos a falar de pessoas infiltradas que tentam amplificar alguns comportamentos junto das massas. Mas voltando à questão, eu nunca dei grande importância a qualquer um destes casos, porque era um jogador que me concentrava muito nas minhas tarefas dentro de campo.
Quem são os principais agentes preventivos dos casos de racismo. Devem ser os jogadores ou as instituições? Devemos agirão mais ao nível dos exemplos ou apostar em castigos cada vez mais pesados?
Quem pode agir são sempre as pessoas. Estamos num mundo global, não podemos controlar tudo, mas temos de encontrar aquelas pessoas que estão verdadeiramente preocupadas com estes problemas e têm uma mensagem a passar. Temos de ampliar essa mensagem, temos de aproveitar o poder da informação, porque só assim podemos chegar onde o racismo estiver verdadeiramente enraizado. Depois, nós temos de ser fiscais de nós próprios, por exemplo, temos de ter coragem de passar a mensagem à pessoa que está ao nosso lado no estádio e tem um comportamento errado.
Fala-se muito de como é importante integrar, ou saber receber, mas um jogador também deve esforçar-se na adaptação a um país estrangeiro. O Abel Xavier jogou em oito países diferentes. Como é que se adaptava?
É isso, o grande segredo quando chegamos a um país estrangeiro é ter capacidade de integração e isso passa desde logo por conhecer a língua. Temos de nos esforçar, lutar e às vezes isso significa ir aprender. Muitas vezes há jogadores que se excluem pura e simplesmente porque não procuram integrar-se, falar o idioma local, interagir... quando fui para Holanda quis começar a falar holandês, quando fui para a Turquia quis igualmente aprender; em Itália falava italiano... este esforço, quando é feito, também é reconhecido e valorizado por quem está a receber-nos.
“É preciso distinguir clubite e fanatismo de racismo e xenofobia”
Apesar de tudo, ou dos casos que vão aparecendo, Portugal é um país exemplar quanto ao Racismo?
Creio que sim, mas nós temos de ser preventivos, somos nós que temos de ter a responsabilidade de apelar à consciência das pessoas. Hoje em dia a maioria dos cidadãos vive bastantes dificuldades e facilmente é tentado a comportamentos ou manifestações que não teria noutras condições. Portugal tem uma história de integração, mas não podemos ficar à espera que aconteça algum caso para depois agir.
Jogou em tanto países, onde é que sentiu Racismo?
Em Inglaterra percebi uma situação curiosa. Há 12 anos, quando fui para o Everton, constatei que a cidade de Liverpool estava dividida entre o Everton e o Liverpool por questões de ideologia, de cultura, de educação. O Everton era um clube racista, o Liverpool, onde também cheguei a jogar, não. E foi o futebol que ajudou o Everton a mudar. Eu fui um dos primeiros jogadores negros do Everton enquanto o John Barnes, que é negro, foi um dos grandes jogadores e inclusivamente capitão do Liverpool. Um dia vi o jogo da bancada no estádio do Everton e reparei que não havia um adepto negro. E estamos a falar de há 12 anos. Eu tive de interagir com os adeptos e eles depois corresponderam à minha vontade. O racismo é um fenómeno arcaico e temos de ser nós, pessoas, que temos de agir para a integração social.
Como é possível que a mensagem flua mas haja gente agarrada ao passado?
Temos de gerar pessoas melhores. A minha carreira de futebolista foi um veículo para me tornar um homem melhor, evoluído, aberto, liberal e valorizado. Estou agora melhor preparado do que se tivesse um diploma. Viajei, aprendi, tenho uma maneira diferente de pensar. Tive a oportunidade de fazer uma carreira muito rica, diversificada, bastante diferente da maioria dos meus colegas. Fui um nómada, aprendi muito e sei que isso me vai ajudar a educar os meus filhos.
Tem estado afastado do futebol.
Estou atento e quero regressar. E fá-lo-ei com pessoas competentes e nunca para ser um tipo submisso. Um mundo que é gerido apenas pelos resultados e conflitos, não é um mundo para mim. Vou investir fortemente no futebol para construir algo mais marcante mas não quero ser apenas mais um que se deixou descaracterizar aos olhos do povo português. Ainda há pouco tempo recebi convites para voltar a jogar. Estou consciente de que a minha imagem e o que fiz na carreira podem ser atrativos. Podia estar a jogar já amanhã mas eu tenho um rumo definido. Acredito que é preciso uma renovação no futebol português porque os discursos bonitos são inconsequentes. Há um mercado externo que quer entrar em força em Portugal e nós não permitimos que entre. Não podemos ser competitivos e não executar reformas.
O que aprendeu na experência em Los Angeles? Toda aquela envolvência mexeu consigo?
A vida levou-me para determinadas realidades e a conhecer determinadas pessoas que eu não estava à espera. Se eu tive de estar em LA naquela altura é porque isso tinha de acontecer. Por exemplo, aprendi muito com o David Beckham. Somos amigos e tenho projectos futuros que de certa forma o envolvem. Mas acerca da experiência em Los Angeles... quando olho para trás, para as transformações que o futebol me permitiu fazer à minha vida, penso que não mudei a forma de pensar. Sou o mesmo.
“Fui um dos primeiros jogadores negros do Everton(...). Não havia um negro na bancada”
O Abel Xavier teve momentos na carreira em que necessitou da ajuda do Sindicato?
O Sindicato ajudou-me na sequência dos castigos que tive ao serviço da Selecção Nacional. É importante sentir que temos apoio quando estamos fora do nosso país; estamos a tentar representar e dignificar o nome de Portugal e é conveniente que nos possam ajudar nesse papel. Há momentos em que um jogador pode sentir-se isolado, por vezes necessita de ajuda em questões laborais, mas o ideal é que possa abstrair-se desses problemas para que o seu rendimento seja máximo. Essa ajuda existe, por vezes os jogadores é que não têm noção da força que podem reunir na luta pelos seus problemas. A classe dos jogadores tem de saber que, se quiser, tem força para parar a indústria do futebol. É bom que todos os jogadores, todas as grandes referências dos grandes campeonatos, a nível europeu, tenham noção deste papel e entendam que todos juntos, unidos, podem ter muita força.
Reconhece ao Sindicato dos Jogadores capacidade de intervenção?
O Sindicato dos Jogadores é uma instituição que assume um papel preponderante, porque faz a defesa e a protecção daqueles que são os pilares mais importantes deste desportol: os futebolistas. Há outros agentes importantes, reconhecemos que são necessários outros contributos e competências para tornar o futebol na grande modalidade global que é, mas os jogadores é que estão na origem de tudo. Hoje em dia existem problemas graves de gestão na grande parte dos clubes e os jogadores é que sofrem as consequências – neste âmbito o Sindicato tem feito um trabalho notável em muitas situações concretas; e esse trabalho deve ser reconhecido por todas as entidades do futebol.