“Ninguém gosta de cometer erros”


Com a experiência de 24 anos de arbitragem, João Ferreira elogia o estado da arbitragem portuguesa, a passagem desta para a FPF e apoia a profissionalização dos árbitros.

Qual é o estado da arbitragem em Portugal?
Recentemente a arbitragem portuguesa atingiu um patamar de reconhecimento internacional sem comparação no seu historial. A nomeação para a final da liga dos Campeões e a participação no Euro 2012, que culminou com a participação na final deste grandioso evento, faz do Pedro Proença um dos melhores árbitros da Europa e do Mundo. O estado da arbitragem em Portugal está ao nível da excelência como comprovadamente tem sido reconhecido além-fronteiras.

 

 

Foi benéfica a passagem da arbitragem da Liga para a FPF?
Não era cómodo ter duas entidades que faziam a gestão da arbitragem portuguesa, com mecanismos díspares. Sou um convicto defensor de que a arbitragem deve ser gerida de forma autónoma da entidade que representa os clubes (Liga), pelo que a mudança é de salutar. Neste escassos meses (porque na verdade só desde o início da presente época estamos a sentir esta alteração), parece-me que há ainda um caminho a percorrer nos mecanismos que estavam instituídos quando a arbitragem estava no seio da Liga Portugal. Na verdade há já uma grande alteração que julgo ser muito profícua: formação comum, simultânea e com os mesmos conteúdos a todas as categorias de árbitros, privilegiando deste modo a partilha de conhecimentos e a uniformização de procedimentos em todas as competições nacionais.

 

 

Na sua opinião quais são as medidas que devem ser implementadas para melhorar o sector?
A arbitragem atingiu um patamar que, nos moldes actuais, pouca margem de progressão lhe é permitido. Há necessidade de mudar o paradigma da arbitragem e dotar os árbitros da disponibilidade total ao desempenho. Isto só é viável com a profissionalização do sector.

 

 

Quais são os grandes desafios da arbitragem?
Os grandes desafios são manter o legado deixado na última época, sobretudo em termos internacionais. Importa também afirmar que esta credibilização que o sector tem junto da UEFA e FIFA deveria rapidamente passar para as mentes dos responsáveis dos clubes portugueses. Todos nós cometemos erros e em todos os jogos. Ninguém gosta de cometer erros.

 

 

E como avalia o estado do futebol português?
Em termos desportivos, o futebol português está extremamente saudável como comprova o facto de pela primeira vez Portugal ter seis clubes na fase de grupos das competições da UEFA. A juntar a este indicador há também a posição relativa da nossa Selecção (top 5 da FIFA). No entanto receio que haja também um fenómeno económico menos positivo que arruína esta visibilidade e que se prende com a falta de liquidez de alguns clubes e, consequentemente, o incumprimento salarial para com profissionais dedicados. Não é saudável a um profissional (com ambições pessoais e familiares e encargos assumidos) não ter a garantia de que irá ter o seu ordenado no fim de cada mês para cumprir os seus compromissos!

 

 

Considera que existe uma boa relação entre os diversos agentes do futebol português?
Na generalidade sim. Há no entanto uma margem bem grande de progressão nesta área, bastando para o efeito a criação de espaços de partilha de conhecimentos e fóruns de debate entre todos os agentes. Se cada um tivesse a nobre capacidade de perceber qual a função/missão do outro, garantidamente todas as decisões seriam melhor entendidas.

 

 

Como é que deve ser uma relação árbitro/jogador?
Deve ser aberta e cordial. O jogador deve saber e sentir que o árbitro está no jogo para o proteger e ao futebol. Por vezes no calor da competição, a falta de discernimento não facilita esta relação e é nessas alturas que deverá existir confiança mútua na competência das pessoas. Por um lado o árbitro deve sentir que o jogador está a dar o seu melhor e que é um profissional que está a defender a sua equipa. Por outro lado o jogador deve saber que o árbitro tem de decidir através das suas capacidades sensoriais e com a ajuda dos seus colegas, e que por vezes é quase impossível ter uma certeza absoluta sobre um ou outro lance. Facilita esta relação se existir e cada momento, respeito! Respeito, porque cada um destes intervenientes está a dar o seu melhor. Respeito pelo adepto, se não existirem simulações para enganar (pura batota). Respeito, garantindo a imparcialidade e valorização do futebol, com desempenhos assertivos por parte do árbitro e da sua equipa. O árbitro não é inimigo do jogador nem vice-versa. Todos deverão promover, dentro do espectáculo, uma franca e leal conduta, de forma recíproca.

 

 

Ao longo dos anos tem notado se os jogadores têm mudado o seu comportamento para com os árbitros?
Garantidamente sim. Mas também tem mudado o comportamento dos árbitros em relação aos jogadores. Na verdade há uma melhor aceitação das nossas decisões. A generalidade dos jogadores sabem o quão difícil é decidir em escassos segundos, centenas de situações em cada jogo. Até em decisões muito complicadas, começa a ser comum os jogadores admitirem a sua falha. Estamos todos envolvidos no mesmo ambiente de trabalho e com um factor comum: valorizar o futebol. E isso tem sido conseguido com a competência dos jogadores mas também dos árbitros. Respondo a estas perguntas com a experiência de 24 anos de arbitragem, 14 dos quais a dirigir jogos no futebol profissional. Sinto que nestes últimos anos há uma empatia generalizada dos jogadores com a maioria dos árbitros. E isso facilita o nosso desempenho e a aceitação das nossas decisões.

 

 

Seria positivo todos os clubes terem na sua estrutura ex-árbitros para auxiliarem jogadores, técnicos e dirigentes?
Na minha vida profissional tenho de estar permanentemente informado sobre a legislação que abrange a minha actividade. Entendo que deveria ser assim em todas as profissões. Acontece com frequência que nem jogadores nem técnicos sabem pormenores das leis de jogo. Por exemplo, é comum um jogador sair do terreno de jogo para corrigir o equipamento e que, de acordo com as leis de jogo, este só pode regressar ao terreno de jogo durante uma interrupção e após ter sido verificado o equipamento. Questiono os leitores quantas vezes já viram jogadores nestas circunstâncias a pedirem para reentrarem no terreno de jogo com este a decorrer, tendo os próprios técnicos e colegas e reiterar este pedido, solicitando também ao árbitro e de uma forma veemente como se este fosse cego ou surdo? Ora isto resulta por puro desconhecimento da lei.

 

 

Ser árbitro é uma actividade apelativa para os jovens?
Será tanto mais apelativa quanto mais positiva for transmitida a imagem e importância do árbitro. Recentemente tivemos alguns percalços na cativação de novos jovens, fruto de questões associadas à fiscalidade e que demoveu alguns a entrar nesta actividade. Como formador de arbitragem vejo, a cada época que passa, mais jovens a tirarem a sua formação e entrarem na arbitragem. Mas passados alguns meses, a grande maioria abandona. Isto é resultado de privação que a actividade exige. Para um jovem que quer aproveitar essa fase da vida, ter que fazer bastantes sacrifícios e abdicar de alguns comportamentos que são incompatíveis com a arbitragem, demove-os de continuar! No entanto, passada essa fase de habituação, aos resistentes aparece um gosto muito especial pela arbitragem que jamais os abandonará.

 

B.I.: 
Nome: João Ferreira
Idade: 45
Associação: Setúbal
Profissão: Oficial do Exército