“Abracem os vossos familiares e não desistam dos vossos sonhos”
Um ano e meio depois de ter começado a guerra na Ucrânia, Vitalii Kurylchyk está em Portugal.
O dia 24 de fevereiro de 2022 mudou radicalmente a vida de Vitalii Kurylchyk. Com um acordo fechado para jogar nas ligas profissionais da Ucrânia, a invasão russa alterou-lhe os planos.
Forçado a deixar o seu país, o defesa central de 22 anos veio para Portugal, jogou no Comércio e Indústria na última época e está atualmente sem clube, fazendo parte do Estágio do Jogador, organizado pelo Sindicato.
Apesar das dificuldades que a vida lhe colocou, Vitalii está otimista no futuro e acredita que vai vingar no mundo do futebol.
Quando é que o futebol surgiu na tua vida?
Um dia estava a ver futebol com o meu pai na televisão e perguntei ao meu pai como é que conseguia ser jogador de futebol, para também estar na televisão. Naquela altura ele tinha uma escolinha de futebol do Metalist Kharkiv e ele pôs-me lá, onde comecei a dar os primeiros passos como jogador.
Como é que foi a tua infância na Ucrânia?
Quando era criança tinha uma família muito boa. Agradeço aos meus pais e espero que todas as crianças tenham os pais que eu tenho, que sempre me ajudaram no meu caminho. Era uma criança normal, estudava, jogava à bola, sempre tentei alcançar os melhores resultados e a família sempre me ajudou nesse sentido.
Tens algum ídolo ou referência?
Quando eu era criança quem estava a brilhar na altura, dos jogadores ucranianos, era o Andriy Shevchenko, que ganhou a Bola de Ouro, e era a minha primeira referência.
Quando apareceu a Covid-19 ainda estavas na Ucrânia. Como é que lidaste com o confinamento?
No período da Covid-19 eu tinha 19 anos, assinei o meu primeiro contrato profissional com uma equipa da Segunda Divisão [Mukacheve] e nessa altura apareceu a pandemia. Ficámos isolados durante seis meses, não treinámos nem jogámos e todos os jogadores foram para as suas casas. Como o clube estava noutra cidade, eu fui para junto da minha família e fiquei em casa com eles.
Em 2020, depois da Covid-19, foste jogar para a Hungria. Como surgiu essa oportunidade?
Depois da Covid-19, em 2020, a Hungria ainda era daqueles países que não estavam muito fechados, onde não era necessário ficar durante duas semanas em casa e foi uma proposta de um amigo meu, que conhecia naquela equipa. Fui para a Hungria e acho que foi uma boa experiência, como primeiro ano que vivi fora do meu país. Aprendi uma nova cultura, como lutar contra os problemas e foi uma experiência muito positiva. Na altura tinha duas propostas, ir para a Hungria ou para a Polónia, mas havia quarentena na Polónia e como queria jogar futebol, escolhi ir para a Hungria e daí resultou a minha escolha.
Quando terminas a ligação com o Tarpa SC, voltas à Ucrânia. Onde é que estavas no dia 24 de fevereiro de 2022?
Sim, eu lembro-me muito bem daquele dia. Estava na cidade Kremenchuk, naquela altura estava tudo pronto para assinar contrato com o Kremin, equipa da 2.ª divisão da Ucrânia, mas na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, às 5 horas, recebi uma chamada telefónica do meu primo a perguntar-me onde é que eu estava. A minha família vive em Kharkiv, onde começaram os ataques dos russos naquele dia. Quando começámos a falar percebi que tinha começado a guerra. Ligámos para as famílias e a partir daquele momento já não fazia sentido continuar na equipa e cada um começou a tratar da sua vida e a rezar pelos seus familiares.

“Fui muito bem recebido [no Estágio do Jogador] e encontrei condições de topo, ao nível do material e equipa técnica. Estou a gostar imenso e vou recomendar aos jogadores que precisem para viverem esta experiência.”
Ao saíres da Ucrânia, o que mais te custou deixar para trás?
Quando começou a guerra surgiram muitos problemas e vi muitas pessoas desorientadas, que perderam tudo. Só tinham uma mala com documentos e não sabiam o que fazer. Na nossa casa, chegou uma altura em que viviam perto de 20 pessoas que nem conhecia. Lembro-me bem desse momento, era muito difícil deixar a minha família, mas os meus pais disseram que eu tinha de sair e decidi ir para a Europa continuar a jogar futebol e seguir o meu futuro.
Consegues contactar com os teus familiares, mesmo à distância?
Sim, graças a Deus tenho contacto com a família através da Internet. Há sete meses tinha dificuldades com a rede, que caía, e ficava três dias sem contactá-los. Naquela altura era muito difícil porque estamos sempre a pensar na família, se estão bem ou não, em tudo o que nós fazemos.
Como é que tem sido a tua experiência em Portugal?
Quando cheguei a Portugal percebi que o clima é maravilhoso, porque na nossa terra, no inverno, as temperaturas são sempre negativas e aqui não baixa dos zero graus. Em Portugal, o ambiente é muito bom para treinar, conseguimos fazê-lo toda a época sem paragens. Também gosto muito do mar, que não temos na Ucrânia. As pessoas são muito abertas, querem sempre ajudar no que conseguem, e estou agradecido a todos desde que cá estou.
Quais foram os maiores obstáculos que encontraste em Portugal?
A primeira dificuldade que senti foi a língua. É outra cultura e como no futebol é preciso comunicarmos com os jogadores, notei muito isso no início. Agora estou a tentar recuperar essa falha. Também senti que somos mais rápidos do que os latinos, que levam tudo com calma.
Tens interesse em aprender a falar português?
Sim, quero aprender português e, como qualquer pessoa que quer viver em Portugal, tenho de falar a língua, por isso é uma prioridade para mim. Esta já é a quinta língua e acho que consigo aprender rápido. Na Hungria conseguia comunicar 60% da língua, que também é bem difícil, por isso acho que consigo compreender português rápido. A minha língua materna é o ucraniano, mas também falo russo, húngaro e um pouco de inglês.
Depois de teres jogado na época passada no Comércio e Indústria, vieste para o Estágio do Jogador. Como é que tiveste conhecimento desta iniciativa e o que te levou a participar?
Encontrei um post no Instagram, decidi enviar um email com os meus dados, depois chamaram-me para treinar e fiquei surpreendido. Fui muito bem recebido e encontrei condições de topo, ao nível do material e da equipa técnica. Estou a gostar imenso e vou recomendar aos jogadores que precisem para viverem esta experiência.

“Depois de estar um ano longe da família, percebi que ter a possibilidade de abraçar os nossos familiares e mostrar o nosso amor não tem valor.”
Quais são os teus objetivos neste momento?
Os meus objetivos são os maiores. Neste momento procuro assinar um contrato profissional com uma equipa, para ter a oportunidade de treinar, desenvolver-me como jogador e mostrar a minha qualidade.
Sabemos que jogaste com o Trubin na formação do Shakhtar. Ele acabou de chegar ao Benfica. Como foi teres jogado com ele?
A minha experiência com o Trubin foi muito positiva. Jogámos juntos alguns anos no Shakhtar e fomos campeões da Ucrânia naquela altura, por isso ficará para sempre na minha memória. Conheço-o bem como pessoa, é muito positivo e profissional no que faz. Pode ter dificuldades de adaptação, mas acho que consegue atingir um nível superior ao do presente. É o que desejo para ele e tenho a certeza que se vai realizar no Benfica.
No Shakhtar também jogaste com o Mudryk, que agora está no Chelsea. Gostavas de chegar ao nível dele?
Sim, joguei com o Mudryk há algum tempo no Shakhtar. O que posso dizer sobre ele é que é uma pessoa muito talentosa, que trabalha muito, até houve uma altura em que estava a treinar à parte e foi multado, mas continuava a trabalhar para voltar a ser integrado. Ele é muito novo, vai evoluir ainda mais, é um jogador rápido e que ainda vai brilhar na Europa.
Quais as maiores lições que aprendeste ao longo de desafios como uma pandemia e uma guerra?
O que aprendi, em primeiro lugar, foi ter paciência, caráter, acreditar naquilo em que consigo chegar mais alto e realizar os caminhos que projeto. Durante o tempo que vivi já passei por dificuldades, mas isso deu-me mais força.
Podes partilhar algumas experiências ou momentos específicos que te tenham inspirado a continuar a perseguir os teus sonhos, apesar das circunstâncias difíceis?
Como pessoa procuro realizar-me, cada homem tem de se sentir realizado. Como jogador, quero voltar a assinar um contrato profissional. Durante a minha carreira já o fiz várias vezes, mas ficaram sempre sem efeito devido ao covid ou à guerra. Na Ucrânia, temos um provérbio que diz que se te queres rir perante Deus, podes contar para ele os teus planos, porque tudo depende dele e nunca sabemos como vai ser o dia seguinte. Já tinha contrato apalavrado com uma equipa da primeira divisão da Ucrânia quando começou a guerra, por isso não tenho a certeza do meu futuro, mas espero assinar um contrato profissional para me realizar como jogador e homem.
Que mensagem final gostarias de deixar a quem leu/viu esta entrevista?
Em primeiro lugar quero agradecer ao Sindicato dos Jogadores, por ter esta oportunidade de mostrar a minha qualidade e treinar aqui. Estou cheio de emoções positivas e quero agradecer a toda a equipa técnica por ter recebido um ucraniano na sua equipa. Também quero deixar palavras de agradecimento à minha família, que me apoia sempre, e desejar a todas as pessoas no mundo que tenham a oportunidade de abraçar as pessoas que amam. Depois de estar um ano longe da família, percebi que ter a possibilidade de abraçar os nossos e mostrar amor não tem valor. Os meus familiares estão no país onde continua essa guerra estúpida, por isso eu acordo a pensar como está a minha família neste momento… e isso é muito difícil! Por isso, mando cumprimentos à minha família, abraço-os com as palavras e digo aos meus pais que os amo muito. Quero dizer muitas coisas, mas não é fácil encontrar as palavras certas. Em primeiro lugar agradeço o vosso apoio e dou a minha palavra que vou realizar os meus objetivos e vai correr tudo bem! E digo a todos que estão a ver essa mensagem para não se esquecerem de abraçar os vossos familiares e mostrar o vosso amor aos vossos pais, mulheres e filhos porque isso é muito importante! Eu percebi isso na minha vida por causa da guerra. Hoje vocês têm essa oportunidade, amanhã podem não ter. Também agradeço ao Vitaliy Kurtysh, que me está a acompanhar em Portugal e que me ajuda muito. E quero deixar uma mensagem a todos os jogadores e não só. Levantem a cabeça e corram para atingir os vossos objetivos. Se não der a correr, que seja a caminhar. Nunca deixem apagar os vossos sonhos! Sigam em frente e, mais cedo ou mais tarde, vão chegar lá! Eu ainda não cheguei ao topo como os meus amigos (Mudryk e Trubin) mas tenho a certeza de que vou chegar lá acima! Por isso acreditem em vocês e tudo vai ser alcançado! Slava Ukraini (Glória à Ucrânia)!



