“Ser mãe é a coisa mais bonita”
Ana Borges, a mais internacional de sempre pela Seleção Nacional, é a protagonista da revista Woman.
É um nome maior do futebol nacional e a jogadora com mais internacionalizações pela Seleção A. Aos 35 anos, Ana Borges ainda olha para o que tem por conquistar, ao nível de clube e da Seleção, sem fazer planos para o pós-carreira, até porque sonhava ser surfista e o futuro dificilmente passará pelas ondas. Só não lhe falem é de ser treinadora.
Vamos começar pelo início: Gouveia. Foi aí que começaste a dar os primeiros passos no futebol? Como é que surge o futebol na tua vida?
Sim. Foi em Vinhó, concelho de Gouveia. Foi com os meus irmãos. Basicamente, era na escola, mas longe de imaginar que havia futebol feminino na altura.
Então foi mais pela influência dos teus irmãos que começaste a jogar?
Sim, foi a jogar com eles e com os meus amigos, no ringue e na escola. Sempre que ouvia o apito para sair, deixava a mochila em casa, às vezes nem subia, mandava a mochila e ia a correr para o ringue para jogar futebol, e depois era nos intervalos da escola.
Sempre quiseste ser jogadora ou havia outra profissão que te visses a fazer se não continuasses no futebol?
Eu não queria ser jogadora, mas também não tinha uma profissão que quisesse seguir. Era miúda, nem sequer sabia que existiam equipas de futebol feminino. Só quis ser jogadora quando fui para fora, na primeira experiência que tive fora. Aí, sim, pensei e disse para mim mesma: “ok, quero ser jogadora de futebol”.
Como é que surgiu a possibilidade de te mudares para Espanha, quando o futebol feminino português não tinha a visibilidade que tem hoje?
Na altura tinha 17 anos. Tiveram de assinar um papel para eu poder viajar, por ser menor. Foi através de vídeos da Seleção. Eu jogava numa equipa distrital, do concelho de Gouveia, o futebol feminino não tinha tanta visibilidade, mas, em contexto de Seleção, já se publicavam vídeos no YouTube e foi assim.
Depois também estiveste nos Estados Unidos, em 2012. Foi uma experiência enriquecedora?
Sim. Acabei por ir dois anos aos Estados Unidos, com uma pausa. Fui para lá, voltei para Espanha e fui outra vez para os Estados Unidos. Na altura, a liga norte-americana ainda não era profissional e eu dizia que ia só mesmo aqueles quatro meses. Se fosse por mais tempo, se calhar não tinha aceitado, até porque, estando em Espanha, se houvesse alguma coisa era mais perto de Portugal, podia chegar a casa facilmente, e ali não era tanto assim. Estava a 16 horas de casa, de avião. O certo é que quando, depois, era para voltar para Espanha, já queria ficar nos Estados Unidos. Realmente, é um mundo à parte e a importância que dão ao futebol feminino... A primeira coisa de que me lembro, quando cheguei, foi que os cartazes, que na altura víamos com o Figo ou com o Cristiano Ronaldo, eram do futebol feminino. Lá elas são mesmo a imagem do futebol e isso realmente foi uma mais-valia.
Estiveste em Espanha, Estados Unidos e Inglaterra, três países que estão entre as potências do futebol feminino a nível mundial. Em qual destes países te sentiste mais realizada como jogadora? Foi nos Estados Unidos, como dizias, por ser tão valorizado?
Ainda que o futebol feminino seja muito valorizado nos Estados Unidos, a Inglaterra vai estar num ponto mais alto ao nível da competitividade, mas também pela importância que dão à mulher e ao futebol naquele país. Portanto, diria que foi mesmo no Chelsea.
Desde o início da tua carreira, já jogaste como avançada, lateral e até como defesa central, numa linha de três. A polivalência é uma mais-valia?
Sim, até porque também ajuda os treinadores. Se conseguimos fazer mais do que uma posição também é uma mais-valia para nós, não só aqui, mas também a nível de Seleção, porque, enquanto jogadoras, nós queremos jogar futebol, queremos estar no onze. Muitas vezes não é possível porque a competitividade é grande, e isso é uma mais-valia para o clube, agora, se podemos jogar em três ou quatro posições isso também nos dá outra esperança. Se calhar não podemos jogar aqui, mas ali, mais cedo ou mais tarde, podemos fazer falta e vão pensar em nós. É uma mais-valia enquanto jogadora.

“O primeiro Europeu foi um ponto muito alto do futebol feminino em Portugal porque ninguém acreditava em nós, Portugal ainda era um país pequenino, e a partir daquele momento começaram a olhar para nós com outros olhos.”
Recuar no terreno acabou por ser algo natural com o passar dos anos?
Não, porque quando comecei a jogar futebol era central. Comecei a central, depois fui avançando no campo e, agora, se calhar, com a idade, vou outra vez recuando no campo.
Em que posição te sentes mais confortável a jogar?
Desde que esteja lá dentro, não há uma posição de que eu goste mais ou menos.
Quando cumpriste a primeira internacionalização por Portugal, alguma vez imaginaste vir a ser a mais internacional portuguesa de sempre?
Não, até porque não sou uma jogadora que goste ou que queira bater recordes ou ligue a números. Quero jogar futebol, as coisas foram surgindo e sou uma privilegiada por isso.
Jogaste a fase final dos Europeus de 2017, 2022 e 2025 e do Mundial 2023. Qual destes foi o momento mais alto do teu percurso na Seleção Nacional?
O momento mais alto obviamente que é quando atingimos as fases finais, mas se calhar o primeiro Europeu foi um ponto muito alto do futebol feminino em Portugal porque ninguém acreditava em nós, Portugal ainda era um país pequenino, e a partir daquele momento começaram a olhar para nós com outros olhos. E mesmo nós, o facto de depois conseguirmos atingir a fase final de 2022, pelas circunstâncias que foram, mas também mérito nosso, pelos pontos que conseguimos ali, e depois o Mundial foi a afirmação daquilo que é a jogadora portuguesa.
A Seleção Nacional participou nas últimas três edições do Europeu e no último Mundial. Como avalias o crescimento da nossa Seleção?
É como eu tenho dito sempre. O crescimento da Seleção está aos olhos de toda a gente e fruto disso mesmo é o facto de termos participado nas últimas fases finais, seja do Euro ou do Mundial. Obviamente que ainda há muito trabalho que tem de ser feito, mas estamos a dar passos pequeninos e estamos no caminho correto. Queremos voltar a apurarmo-nos para uma fase final, que neste caso vai ser o Mundial.
Ainda há um preconceito em relação ao futebol feminino ou já está a mudar?
Está a mudar. Obviamente que se calhar ainda há algum, mas nada a ver com aquilo que era quando comecei a jogar futebol, que havia muito. Hoje já não há tanto. Há cada vez mais pessoas a ir aos estádios ver futebol feminino, e a prova disso são os recordes que batemos na Seleção ou nas fases finais da Taça de Portugal. Isso também quer dizer muito daquilo que tem sido a evolução.
Em que momento notaste que houve uma mudança de mentalidade em Portugal e as pessoas começaram a olhar com outros olhos para o futebol no feminino? Foi desde que a Seleção atingiu as fases finais?
E o facto de as ditas equipas grandes terem apostado no futebol feminino também deu abertura às pessoas para acompanharem mais o futebol feminino, a evolução, quererem saber mais de nós enquanto mulheres e, claro está, depois a partir do momento em que conseguimos atingir as fases finais cada vez há mais pessoas a quererem ver e acompanhar. Isso também tem vindo a ser notado pelos mais pequenos. Vejo muitos meninos a querer ir aos jogos de futebol feminino. Isso diz muito.

“No dia em que deixar o futebol, o maior título que vou levar é a amizade de muitas jogadoras. Independentemente do clube que representamos, há essa amizade.”
O Sindicato apresentou no início de 2023 uma proposta de acordo coletivo de trabalho para o futebol feminino. Entre outras questões, prevê a proteção das jogadoras em temas como a maternidade e o salário mínimo. Como é que vês esta luta do Sindicato pela garantia de condições de trabalho para as jogadoras?
É uma mais-valia até porque se calhar há muitas jogadoras que gostavam de ser mães, mas têm receio a nível de contrato. As empresas e os clubes podem ter a ideia de despedimento ou cortar nos salários e isso é uma mais-valia para garantir que as mulheres têm esse direito, porque é um direito. Acho que ser mãe é a coisa mais bonita e, enquanto mulheres, é isso que nós queremos. O Sindicato está a lutar por isso, para o nosso bem, e é uma mais-valia. Quanto às condições dos salários, acho que é uma luta que ainda vai durar algum tempo, mas estamos a dar bons passos nesse sentido. Há cada vez mais jogadoras a viver do futebol, agora também temos a plena noção de que muitos clubes não conseguem suportar esses custos e muitas jogadoras acabam por ser prejudicadas por isso.
Quem são as pessoas mais importantes para ti no futebol?
Diria que toda a gente com quem me tenho cruzado, as minhas colegas, treinadores e diretores são sempre as pessoas mais importantes. Sempre disse que não ia levar amizades do futebol, mas posso dizer que no dia em que deixar o futebol, o maior título que vou levar é a amizade de muitas jogadoras. Independentemente do clube que representamos, há essa amizade. Uma coisa é dentro de campo, outra coisa é fora de campo.
Tens dois campeonatos nacionais, três Taças de Portugal, três Supertaças, uma liga inglesa e uma Taça de Inglaterra. O que te falta conquistar no futebol?
Falta-me conquistar uma Taça da Liga, falta-me passar uma fase de grupos a nível de Seleção… Acho que vou deixar o futebol e ainda vai haver muitas coisas por conquistar, mas a maior conquista que vou levar é que também conseguimos abrir mais portas para as novas gerações e isso deixa-me super orgulhosa.
Assinaste recentemente pelo Benfica, apesar do contratempo que te vai afastar alguns meses dos relvados. Que expetativas e objetivos tens para o futuro?
Ainda vai ser algum tempo fora dos relvados, vai ser um processo longo, no entanto quem está no Benfica só pode pensar em conquistar o máximo de títulos possível. A história também fala por isso mesmo, a quantidade de títulos que o Benfica já tem em 6 anos de existência diz muito daquilo que é o projeto Benfica. Gostava de estar lá dentro, porque quero ajudar e ganhar títulos, mas sei que elas vão fazer um grande trabalho e quando eu voltar vou ser mais uma para ajudar a equipa. Vou estar um bocadinho fora do terreno de jogo, mas sempre de fora a apoiar com a expetativa de voltar o quanto antes e bem, também para ajudar.
Quando terminares a carreira de jogadora pretendes continuar ligada ao futebol ou seguir outra atividade?
Não penso nisso. Acho que, logo diretamente, não quero ficar ligada ao futebol. Acho que precisamos de um tempo de descanso, são muitos anos. Não sei se depois de um ano ou dois anos posso voltar a ficar ligada ao futebol, mas não logo no imediato. Pode acontecer, mas neste momento não penso nisso nem sequer me imagino a fazer outra coisa, não consigo ainda ter uma ideia. Aliás, eu antes dizia que queria ser surfista. Neste momento, com as articulações que tenho, acho que não me ia aguentar numa prancha.
A continuar no futebol, ser treinadora é uma possibilidade?
Não, de todo. Tudo menos isso.
Quais são as expectativas que tens para a evolução do futebol feminino em Portugal?
Acho que é o que tem vindo a ser feito. Obviamente que ainda não nos podemos comparar a alguns países, como Inglaterra ou Espanha, mas estamos no caminho certo. Acho que estes passos pequenos que nós vamos dando, o facto de o campeonato português também estar cada vez mais competitivo e chamar mais jogadoras estrangeiras diz muito daquilo que é o trabalho que está a ser feito em Portugal, pelos clubes, pela Federação e pelas associações. Acho que daqui a uns anos estaremos melhor porque temos muita qualidade, uma formação muito boa e um futebol muito bom de se ver. Eu digo sempre que o nosso futebol e o de Espanha são muito idênticos. Não digo que tratamos a bola da mesma maneira, mas de forma parecida, porque nós queremos jogar futebol, não temos um estilo de jogo mais físico e acho que daqui a uns anos podemos ter outras ambições, que infelizmente agora não conseguimos, como chegar a uma final de uma grande competição ou o mais longe possível numa fase final, que neste momento ainda nos está a deixar um bocadinho com um amargo de boca, porque não conseguirmos passar fases de grupos, mas quero acreditar que no futuro vamos conseguir algo muito bom.



